São Paulo, domingo, 30 de maio de 2010

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CRÍTICA

Ideias no lugar

Sobre crítica, ideologias e arrivismo

RESUMO Lançados num momento em que a crítica literária brasileira se repensa, novos livros dos críticos Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr. oferecem argutos exercícios de leitura e reflexão sobre as ideologias e a literatura no país, do romance de Machado de Assis à poesia de João Cabral de Melo Neto.

MANUEL DA COSTA PINTO

"A FALTA DE GENEROSIDADE NA LEITURA pode ser um empecilho lamentável da compreensão." A frase é do crítico Davi Arrigucci Jr., em entrevista incluída em seu novo livro de ensaios. A afirmação ecoa uma outra, de Sérgio Milliet: "A compreensão do fenômeno artístico não implica a aprovação irrestrita dos resultados".
Generosidade, antidogmatismo, alguma dose de modéstia (que não se confunde com falta de rigor), prazer com esta arte da conversação que é o ensaio -tudo isso pode parecer anacrônico no ambiente belicoso que, vira e mexe, se instaura no meio literário.
Em abril, a crítica Flora Süssekind publicou no jornal "O Globo" um texto ("A Crítica como Papel de Bala") que lê em três necrológios do crítico Wilson Martins (escritos por Alcir Pécora, Miguel Sanches Neto e Sérgio Rodrigues) a intenção de exumar a figura do "scholar" que se afirma pelo simples gesto de ir na contramão dos consensos estéticos.
Há nesses elogios fúnebres uma tentativa de purgar a impotência atual da literatura (a falta de impacto social, o empenho em ganhar as colunas sociais) pela nostalgia do crítico como juiz implacável do gosto. Como um refugiado numa esfera de excelência que precisa desqualificar os discursos que relacionam literatura, história e sociedade - os quais flagram as determinações que fazem do escritor e do crítico coadjuvantes da cena pública.
Há nessa entronização do erudito apegado ao tesouro retórico das Belas-Letras (mas que, nas ocasiões propícias, mostra os dentes de modo irascível) uma estratégia que, num grau elevado, corresponde a uma espécie de supressão ideológica (e conservadora) do caráter desestabilizador da literatura. E que, na sua faceta mais miserável, obedece ao simples desejo de provar "independência". Uma microideologia do arrivismo, pela associação do autor do necrológio ao espólio do elogiado...
O próprio conceito de ideologia será, assim, um termo que se pretende evaporar, mas que reaparece, em sua força crítica, no novo livro de Alfredo Bosi, "Ideologia e Contraideologia" [Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58]. A obra não mira em questões de teoria literária, mas colhe seu rendimento em preciosos excursos sobre Goethe e Machado de Assis.
Bosi e Arrigucci são dois grandes representantes de uma crítica que associa elementos do "close reading" (análise dos elementos que compõem do texto literário) a abordagens oriundas da crítica social e, sobretudo no caso de Arrigucci, da psicanálise. Um "ecletismo teórico responsável", como Fábio de Souza Andrade descreveu a pegada ensaística de Antonio Candido, matriz uspiana dos críticos aqui em pauta.
A leitura das duas obras pelo viés da literatura deve dar maior peso ao livro de Arrigucci, já que "Ideologia e Contraideologia" faz a genealogia histórica de um conceito da ordem da sociologia e da teoria política. Ocorre que esta fornece pressupostos daquela -e serve como antídoto a uma crítica que, para se autopreservar, confina a literatura num beletrismo suspenso no tempo e no espaço.
O livro de Bosi percorre a noção de ideologia, definida como "ligação entre discurso e poder", desde suas formulações primitivas -como o "relativismo antropológico" de Montaigne (no ensaio "Os Canibais") ou a "Utopia", de Thomas Morus ("a primeira contraideologia das tempos modernos").
A partir do surgimento do termo ideologia no século 18, desenha-se uma espécie de guerra cultural. Construções discursivas que legitimam ou atendem aos interesses de "preconceitos etnocêntricos" ou "maus hábitos cognitivos herdados da tradição e das convenções" são enfeixadas pela noção marxista da ideologia como "falsa consciência".
De Condorcet, Vico e Hegel à sociologia da cultura de Lucien Goldmann e ao "relativismo sociológico autocorrigido" de Mannheim, nenhuma acepção das ideologias e contraideologias escapa. "Perfis e Momentos de um Conceito", a primeira parte do livro, termina com uma "coda" na qual Bosi lê o "Segundo Fausto" de Goethe como "mito prometeico do construtor" -narrativa ambivalente do sonho fáustico de dominação do mundo pelo trabalho e pelo progresso técnico, ao mesmo tempo destruidor e transformador.
"Intersecções Brasil/Ocidente", a segunda parte, discute a aclimatação da ideologia liberal no país, as doutrinas do desenvolvimento (com ênfase no pensamento de Celso Furtado), a contradição (aparente) entre liberalismo e escravidão e o "novo liberalismo" de Joaquim Nabuco -desfecho literário que aborda o "nó ideológico" da obra de Machado de Assis.
Em debate explícito com Roberto Schwarz, Bosi discorda da tese segundo a qual as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) seriam uma sátira ao liberalismo brasileiro, uma assimilação à estrutura farsesca do romance machadiano, da farsa de um liberalismo escravocrata.
O argumento repousa sobre uma reflexão de base histórica, já exposta em "Dialética da Colonização" (1992) e aqui retomada. "A Revolução Industrial conviveu longamente com o recurso ao trabalho compulsório", escreve ele. "A ideologia liberal foi hegemônica em todo o Ocidente [...], massacrando tanto o trabalhador escravo das colônias e ex-colônias como o trabalhador assalariado nos países em via de industrialização".
Nenhuma "ideia fora do lugar", portanto, no liberalismo tupiniquim -o que tampouco cancela a singularidade formal do romance de Machado de Assis. Para Bosi, ela consiste em justapor os dois momentos do liberalismo (o escravista e o democrático) aos dois tempos da narrativa (o jovem e imoral Brás Cubas de 1822 e o autor-defunto que, em 1869, satiriza o "clima mental" a que pertenceu).
Sem pôr a perder as vacilações do narrador machadiano, Bosi pinça um terceiro fio, que expõe ambiguidades: um pessimismo enraizado no "Eclesiastes" e nos "moralistes" franceses (Pascal, La Rochefoucauld), cujo ceticismo universalizante deita um olhar condescendente (e ideológico) sobre as estripulias do protagonista. "A boca da sátira primeiro mordeu, mas o hálito gélido soprado pelo defunto autor procurou abrandar a dor da ferida." O novelo histórico foi desatado pelo crítico, mas o ficcionista reatou o nó, que o ensaísta nos transmite em sua integridade artística.
Em chave menos sistemática, "O Guardador de Segredos" [Companhia das Letras, 280 págs., R$ 49] reúne exercícios de leitura que Davi Arrigucci Jr. publicou esparsamente. Sua análise estilística carrega as tensões entre invenção e nomeação do mundo -na qual, parafraseando Milliet, a aprovação dos resultados se insinua nas entrelinhas da compreensão do fenômeno artístico.
Na seção dedicada à prosa, Arrigucci faz uma análise de "Os Ratos" (1935), de Dyonelio Machado ("epopeia rebaixada de um homem comum"), e da confluência de mito, tradição oral e romance no mundo "misturado" de "Grande Sertão: Veredas" (1956), de Guimarães Rosa. Há também uma seção sobre a "imaginação crítica" de ensaístas como Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, e um "bonus track" em que realiza um "close reading" do filme "Frenesi" (1972), de Alfred Hitchcock.
Mas é no bloco sobre poesia (supostamente a menos referencial das expressões literárias) que se vêem melhor suas modulações sobre a especificidade de uma lírica que materializa elementos arcaicos e modernos do país.
No ensaio "Drummond Meditativo", a ênfase é posta na obra inicial do poeta itabirano, no tom aparentemente eufórico do poema-piada modernista -porém, numa perspectiva que vai bem além de seu efeito de rebaixamento irônico.
Arrigucci desvela na estrutura irregular do "Poema de Sete Faces", e na persona do Drummond "gauche", uma contrapartida do "Witz" dos pré-românticos alemães, do "wit" dos ingleses, do "mot d'esprit" dos franceses. Ou seja, do "chiste" como uma iluminação parcial (e, mais uma vez, irônica) do sujeito que sente o descompasso entre o Eu reflexionante, inflado, e seu desterro num mundo cuja proliferação de sentidos o poema tentará reconectar.
O raro equilíbrio entre níveis diversos de contemplação reflexiva -que o autor sugere ser uma resolução superior do "alumbramento" de Manuel Bandeira- se desdobra em mais dois momentos.
Em "João Cabral - O Trabalho da Arte", ele vê uma "atitude ascética" contraposta às aporias, aos impasses subjetivos de Drummond. Cabral, diz ele, procura "dar consistência de pedra, com toda a sua concretude e arestas nítidas e precisas, à fluidez da vida subjetiva".
Mas, na mão contrária de uma fortuna crítica que transformou seu "obstinado rigor" em "palavra mágica no horizonte desencantado do poeta", Arrigucci vê inoculada, num poema metalinguístico como "Tecendo a Manhã", uma "potencial alegoria da solidariedade humana". Imitação que não é só da forma, mas também da realidade objetiva do trabalho depurado em sua essência (correlato objetivo do fazer poético) -uma dimensão político-ideológica que a crítica cabralina circunscreve a "Morte e Vida Severina".
Em Drummond e Cabral, existiria uma continuidade desse "fazer dificultoso ou problemático", um sentimento que se reflete na forma. O mesmo não se pode dizer da leitura de Roberto Piva -generosa no gesto de compreender o individualismo anárquico e delirante do autor paulista, a coerência de uma "poesia experimental fundada na exigência de uma vida experimental", mas que "corre o risco do informe", "do excesso e da verborragia" com seu "epos transbordante" de "vate inspirado".
Curiosa ironia: o ecletismo responsável de Arrigucci, com sua atenção equilibrada para a relação entre forma e fundo, nos diz muito mais sobre o valor autônomo da poesia como artefato estético do que uma crítica encantada com atitudes supostamente subversivas, mas que apenas espelham suas bravatas retóricas.


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