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CRÍTICA
Ideias no lugar
Sobre crítica, ideologias e arrivismo
RESUMO Lançados num momento em que a crítica literária brasileira se repensa,
novos livros dos críticos Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr. oferecem argutos
exercícios de leitura e reflexão sobre as ideologias e a literatura no país, do
romance de Machado de Assis à poesia de João Cabral de Melo Neto.
MANUEL DA COSTA PINTO
"A FALTA DE GENEROSIDADE NA LEITURA pode ser um empecilho lamentável
da compreensão." A frase é do crítico Davi Arrigucci Jr., em entrevista incluída em
seu novo livro de ensaios. A afirmação ecoa uma outra, de Sérgio Milliet: "A
compreensão do fenômeno artístico não implica a aprovação irrestrita dos
resultados".
Generosidade, antidogmatismo, alguma dose de modéstia (que não se confunde
com falta de rigor), prazer com esta arte da conversação que é o ensaio -tudo isso
pode parecer anacrônico no ambiente belicoso que, vira e mexe, se instaura no
meio literário.
Em abril, a crítica Flora Süssekind publicou no jornal "O Globo" um texto ("A
Crítica como Papel de Bala") que lê em três necrológios do crítico Wilson Martins
(escritos por Alcir Pécora, Miguel Sanches Neto e Sérgio Rodrigues) a intenção de
exumar a figura do "scholar" que se afirma pelo simples gesto de ir na contramão
dos consensos estéticos.
Há nesses elogios fúnebres uma tentativa de purgar a impotência atual da
literatura (a falta de impacto social, o empenho em ganhar as colunas sociais) pela
nostalgia do crítico como juiz implacável do gosto. Como um refugiado numa
esfera de excelência que precisa desqualificar os discursos que relacionam
literatura, história e sociedade - os quais flagram as determinações que fazem do
escritor e do crítico coadjuvantes da cena pública.
Há nessa entronização do erudito apegado ao tesouro retórico das Belas-Letras
(mas que, nas ocasiões propícias, mostra os dentes de modo irascível) uma
estratégia que, num grau elevado, corresponde a uma espécie de supressão
ideológica (e conservadora) do caráter desestabilizador da literatura. E que, na
sua faceta mais miserável, obedece ao simples desejo de provar "independência".
Uma microideologia do arrivismo, pela associação do autor do necrológio ao
espólio do elogiado...
O próprio conceito de ideologia será, assim, um termo que se pretende evaporar,
mas que reaparece, em sua força crítica, no novo livro de Alfredo Bosi, "Ideologia
e Contraideologia" [Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58]. A obra não mira em
questões de teoria literária, mas colhe seu rendimento em preciosos excursos
sobre Goethe e Machado de Assis.
Bosi e Arrigucci são dois grandes representantes de uma crítica que associa
elementos do "close reading" (análise dos elementos que compõem do texto
literário) a abordagens oriundas da crítica social e, sobretudo no caso de Arrigucci,
da psicanálise. Um "ecletismo teórico responsável", como Fábio de Souza
Andrade descreveu a pegada ensaística de Antonio Candido, matriz uspiana dos
críticos aqui em pauta.
A leitura das duas obras pelo viés da literatura deve dar maior peso ao livro de
Arrigucci, já que "Ideologia e Contraideologia" faz a genealogia histórica de um
conceito da ordem da sociologia e da teoria política. Ocorre que esta fornece
pressupostos daquela -e serve como antídoto a uma crítica que, para se
autopreservar, confina a literatura num beletrismo suspenso no tempo e no
espaço.
O livro de Bosi percorre a noção de ideologia, definida como "ligação entre
discurso e poder", desde suas formulações primitivas -como o "relativismo
antropológico" de Montaigne (no ensaio "Os Canibais") ou a "Utopia", de Thomas
Morus ("a primeira contraideologia das tempos modernos").
A partir do surgimento do termo ideologia no século 18, desenha-se uma espécie
de guerra cultural. Construções discursivas que legitimam ou atendem aos
interesses de "preconceitos etnocêntricos" ou "maus hábitos cognitivos herdados
da tradição e das convenções" são enfeixadas pela noção marxista da ideologia
como "falsa consciência".
De Condorcet, Vico e Hegel à sociologia da cultura de Lucien Goldmann e ao
"relativismo sociológico autocorrigido" de Mannheim, nenhuma acepção das
ideologias e contraideologias escapa. "Perfis e Momentos de um Conceito", a
primeira parte do livro, termina com uma "coda" na qual Bosi lê o "Segundo
Fausto" de Goethe como "mito prometeico do construtor" -narrativa ambivalente
do sonho fáustico de dominação do mundo pelo trabalho e pelo progresso técnico,
ao mesmo tempo destruidor e transformador.
"Intersecções Brasil/Ocidente", a segunda parte, discute a aclimatação da
ideologia liberal no país, as doutrinas do desenvolvimento (com ênfase no
pensamento de Celso Furtado), a contradição (aparente) entre liberalismo e
escravidão e o "novo liberalismo" de Joaquim Nabuco -desfecho literário que
aborda o "nó ideológico" da obra de Machado de Assis.
Em debate explícito com Roberto Schwarz, Bosi discorda da tese segundo a qual
as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) seriam uma sátira ao liberalismo
brasileiro, uma assimilação à estrutura farsesca do romance machadiano, da farsa
de um liberalismo escravocrata.
O argumento repousa sobre uma reflexão de base histórica, já exposta em
"Dialética da Colonização" (1992) e aqui retomada. "A Revolução Industrial
conviveu longamente com o recurso ao trabalho compulsório", escreve ele. "A
ideologia liberal foi hegemônica em todo o Ocidente [...], massacrando tanto o
trabalhador escravo das colônias e ex-colônias como o trabalhador assalariado
nos países em via de industrialização".
Nenhuma "ideia fora do lugar", portanto, no liberalismo tupiniquim -o que
tampouco cancela a singularidade formal do romance de Machado de Assis. Para
Bosi, ela consiste em justapor os dois momentos do liberalismo (o escravista e o
democrático) aos dois tempos da narrativa (o jovem e imoral Brás Cubas de 1822
e o autor-defunto que, em 1869, satiriza o "clima mental" a que pertenceu).
Sem pôr a perder as vacilações do narrador machadiano, Bosi pinça um terceiro
fio, que expõe ambiguidades: um pessimismo enraizado no "Eclesiastes" e nos
"moralistes" franceses (Pascal, La Rochefoucauld), cujo ceticismo universalizante
deita um olhar condescendente (e ideológico) sobre as estripulias do protagonista.
"A boca da sátira primeiro mordeu, mas o hálito gélido soprado pelo defunto autor
procurou abrandar a dor da ferida." O novelo histórico foi desatado pelo crítico,
mas o ficcionista reatou o nó, que o ensaísta nos transmite em sua integridade
artística.
Em chave menos sistemática, "O Guardador de Segredos" [Companhia das
Letras, 280 págs., R$ 49] reúne exercícios de leitura que Davi Arrigucci Jr.
publicou esparsamente. Sua análise estilística carrega as tensões entre invenção
e nomeação do mundo -na qual, parafraseando Milliet, a aprovação dos
resultados se insinua nas entrelinhas da compreensão do fenômeno artístico.
Na seção dedicada à prosa, Arrigucci faz uma análise de "Os Ratos" (1935), de
Dyonelio Machado ("epopeia rebaixada de um homem comum"), e da confluência
de mito, tradição oral e romance no mundo "misturado" de "Grande Sertão:
Veredas" (1956), de Guimarães Rosa. Há também uma seção sobre a
"imaginação crítica" de ensaístas como Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido,
e um "bonus track" em que realiza um "close reading" do filme "Frenesi" (1972), de
Alfred Hitchcock.
Mas é no bloco sobre poesia (supostamente a menos referencial das expressões
literárias) que se vêem melhor suas modulações sobre a especificidade de uma
lírica que materializa elementos arcaicos e modernos do país.
No ensaio "Drummond Meditativo", a ênfase é posta na obra inicial do poeta
itabirano, no tom aparentemente eufórico do poema-piada modernista -porém,
numa perspectiva que vai bem além de seu efeito de rebaixamento irônico.
Arrigucci desvela na estrutura irregular do "Poema de Sete Faces", e na persona
do Drummond "gauche", uma contrapartida do "Witz" dos pré-românticos alemães,
do "wit" dos ingleses, do "mot d'esprit" dos franceses. Ou seja, do "chiste" como
uma iluminação parcial (e, mais uma vez, irônica) do sujeito que sente o
descompasso entre o Eu reflexionante, inflado, e seu desterro num mundo cuja
proliferação de sentidos o poema tentará reconectar.
O raro equilíbrio entre níveis diversos de contemplação reflexiva -que o autor
sugere ser uma resolução superior do "alumbramento" de Manuel Bandeira- se
desdobra em mais dois momentos.
Em "João Cabral - O Trabalho da Arte", ele vê uma "atitude ascética" contraposta
às aporias, aos impasses subjetivos de Drummond. Cabral, diz ele, procura "dar
consistência de pedra, com toda a sua concretude e arestas nítidas e precisas, à
fluidez da vida subjetiva".
Mas, na mão contrária de uma fortuna crítica que transformou seu "obstinado
rigor" em "palavra mágica no horizonte desencantado do poeta", Arrigucci vê
inoculada, num poema metalinguístico como "Tecendo a Manhã", uma "potencial
alegoria da solidariedade humana". Imitação que não é só da forma, mas também
da realidade objetiva do trabalho depurado em sua essência (correlato objetivo do
fazer poético) -uma dimensão político-ideológica que a crítica cabralina
circunscreve a "Morte e Vida Severina".
Em Drummond e Cabral, existiria uma continuidade desse "fazer dificultoso ou
problemático", um sentimento que se reflete na forma. O mesmo não se pode
dizer da leitura de Roberto Piva -generosa no gesto de compreender o
individualismo anárquico e delirante do autor paulista, a coerência de uma "poesia
experimental fundada na exigência de uma vida experimental", mas que "corre o
risco do informe", "do excesso e da verborragia" com seu "epos transbordante" de
"vate inspirado".
Curiosa ironia: o ecletismo responsável de Arrigucci, com sua atenção equilibrada
para a relação entre forma e fundo, nos diz muito mais sobre o valor autônomo da
poesia como artefato estético do que uma crítica encantada com atitudes
supostamente subversivas, mas que apenas espelham suas bravatas retóricas.
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