São Paulo, domingo, 31 de julho de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Aberdeen

Um possível Kurt Cobain

SÉRGIO ROVERI

QUINTO MOVIMENTO. "Eu tenho olhos azuis. E uso camisas de mangas compridas para que vocês não vejam as crostas e abscessos nos meus braços.
Nem sempre foi assim. Assim triste. Houve um tempo, nem tão lá atrás, em que eu sabia dizer outro tipo de coisa. Não sei se, a esta altura, alguém ainda consegue acreditar que eu já fui capaz de falar sobre a felicidade. Não sobre a felicidade das músicas, mas sobre a felicidade da vida.
Eu sou um cara muito mais feliz do que muita gente pensa. Ninguém colocou isso na minha boca, eu disse isso, exatamente assim. E por algum tempo acreditei nisso que eu disse. Acreditei tanto que eu cheguei a ter medo de que tamanha felicidade fizesse de mim um chato. Embora eu sempre soubesse que eu era neurótico o suficiente para continuar fazendo coisas estranhas, como, como criar coelhos, ratos e tartarugas dentro de casa ou mesmo pintar um quadro e depois passar minha porra em cima da pintura, na crença de que ela adquirisse um brilho mais humano.
Eu nunca disse que fui feliz na esperança de agradar as pessoas. Se eu disse, é porque havia motivos. Em alguns momentos eu fui feliz porque, depois de cinco anos, minha dor de estômago me deixou em paz e eu descobri que podia comer uma pizza inteira numa noite sem ter de passar a madrugada vomitando sangue.
Eu acho que fui um pouco feliz também porque alguns shows eram ótimos, embora eu nunca fosse a fim de cantar, o que eu sempre quis foi tocar guitarra e me esconder lá atrás de todo mundo.
Dinheiro? Sim, uma porrada de dinheiro. Tanta grana que eu achava que nunca mais precisaria fazer nada na vida. Mas daí veio o ano passado e eu torrei um milhão de dólares e não me perguntem como e nem com quê. E teve minha família.
Não aquela da mãe secretária e do pai mecânico, que eu pude ver um ao lado do outro até os oito anos e então nunca mais. E depois uma vida dedicada a ser diferente deles, principalmente dele, sem nunca ter a certeza de que eu consegui.
Uma vida dedicada, ao menos, a tentar dar mais amor do que meu pai foi capaz de dar. A última vez que falei com ele foi por telefone, mais de uma hora. Quando a gente desligou, ele chorou. E eu quase cheguei a acreditar que estava tudo bem. Eu pedi para que ele viesse me visitar. Ele veio, eu não."


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