São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2010

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CRÍTICA

Pintura no purgatório

Quando a arte mete o bedelho na política

RESUMO
Concentrando-se na pintura de Delacroix, Manet, Courbet e Monet, Jorge Coli discute em seu novo livro as relações entre pintura e política na França do século 19, da revolução à emergência da modernidade, e faz uma crítica da recente tendência de absorção de manifestações "antropológicas" pelo "campo cultural complexo".

ALCINO LEITE NETO

ANTES MESMO DA ABERTURA, a 29ª Bienal de São Paulo foi obrigada, pelo Tribunal Regional Eleitoral, a cobrir os trabalhos do argentino Roberto Jacoby que mostram imagens de Serra e Dilma. Foi também acusada, pela Ordem dos Advogados do Brasil, de fazer apologia do terrorismo, ao exibir quadros de Gil Vicente que retratam o artista matando Lula e FHC. Por fim, teve que retirar os urubus que faziam parte do trabalho de Nuno Ramos, por determinação da Justiça Federal, após pressões da militância ecologista, misturadas confusamente ao desconforto do senso comum com a obra "Bandeira Branca".
Todos esses acontecimentos -e outros mais- têm reacendido no Brasil o debate público a respeito das artes plásticas, tornando-as o "ambiente" por excelência onde se discutem questões essenciais à democracia, como a autonomia dos artistas, a censura oficial e a participação política da arte.
"O Corpo da Liberdade - Reflexões Sobre a Pintura do Século 19" [Cosac Naify, 368 págs., R$ 72], de Jorge Coli, que chega às livrarias nesta semana, traz relevante contribuição ao debate. Lançada em outro momento, a obra, apesar de seu vigor crítico, talvez tivesse uma vida discreta e universitária. O lançamento durante a Bienal ressalta a efetiva importância que pode trazer às discussões sobre a liberdade artística.
Paulista de Amparo e professor titular em história da arte e da cultura na Universidade Estadual de Campinas, Jorge Coli, 62, é o principal -senão o único- historiador brasileiro da arte do século 19, assunto ao qual dedicou a maior parte de sua vida. Seu livro traz 14 ensaios, escritos em diferentes épocas, sempre numa prosa clara e elegante, como raras vezes se vê na academia. A maioria é dedicada à pintura romântica e realista, à representação da liberdade e à situação social do artista a partir da Revolução Francesa (1789) até o final do século 19.
Trata-se de um período forte da pintura e das relações entre os artistas e a política. A Europa está inflamada pelas lutas revolucionárias, e os pintores não passam ao largo das mudanças. "De 1789 até 1848, existe sempre uma questão política subjacente à arte", diz Coli à Ilustríssima. "Os artistas metem o bedelho nos assuntos políticos, seja por meios metafóricos, como Géricault, seja diretamente, como Daumier, que foi um ativista de esquerda. Sem falar em Courbet, que militou pessoalmente pela liberdade de criação e por um novo lugar do artista dentro da sociedade."
A partir da Revolução Francesa, segundo o historiador, coloca-se pela primeira vez a questão da autonomia do artista em relação aos poderes políticos e religiosos. Jacques-Louis David (1748-1825) é o símbolo dessa mudança. "Antes, um artista não expressava suas opiniões, pelo menos diretamente. Ele estava lá para celebrar o aristocrata e fazer um quadro para a igreja", afirma.
David adere aos ideais revolucionários e passa a expressá-los. Paradoxalmente, ele será também o último grande artista ligado ao poder político. Quando, no processo mesmo da revolução, a França passa de república a império, David, novamente por decisão pessoal, se liga a Napoleão, tornando-se pintor oficial.
O que virá a seguir será bem mais conturbado, não apenas na relação dos artistas com os poderes, mas com as próprias instituições artísticas, tema que Coli aborda a partir da obra de Delacroix, Courbet e Manet, este patriarca da modernidade que passou dois meses no Rio de Janeiro, na juventude (assunto tratado no texto "Cartas de Manet").
O extraordinário ensaio "O Corpo da Liberdade" é a "peça de resistência" do livro. Nele, Coli analisa o quadro "A Liberdade Guiando o Povo" (1830), de Eugène Delacroix, e descreve as peripécias políticas por que passou a tela -de encomenda oficial a obra maldita pelas autoridades. "Delacroix aproxima sua deusa Liberdade do povo, que a rodeia, fazendo-a assemelhar-se a ele em certos aspectos", escreve o historiador, ressaltando a ruptura provocada pelo artista, que teve a audácia de misturar a luta popular a uma das alegorias "nobres" da pintura. A tela acabaria se tornando quase um símbolo nacional e chegou a estampar as notas de 100 francos.
Mais radical foi Gustave Courbet (1819-77), socialista e militante político, que participou da revolta popular conhecida como Comuna de Paris (1871). Foi preso por seis meses, acusado de ser um dos mandantes da demolição da coluna Vendôme, erguida na capital francesa para celebrar os feitos de Napoleão 1º. Obrigado a pagar uma multa milionária para a reconstrução da coluna, exilou-se na Suíça, onde morreu antes de enviar a prestação inicial da dívida ao governo francês.
"Courbet é o primeiro grande artista a encarar, sem ambiguidades, a produção artística como independente, livre do poder e das instituições", escreve Coli no ensaio "O Novo Artista". Uma carta do pintor ao governo de Napoleão 3º, em recusa à Legião de Honra, a mais importante condecoração francesa, dá a medida de sua aversão ao establishment.
Diz a carta: "O Estado é incompetente em matéria de arte. Quando decide recompensar, usurpa o gosto público. Sua intervenção é inteiramente desmoralizante, funesta ao artista, que ela engana a respeito de seu próprio valor, funesta à arte, que ela aprisiona nas conveniências oficiais e que ela condena à mais estéril mediocridade".
Coli também dedicou ao pintor um livro inteiro, lançado em 2007, apenas na França: "L'Atelier de Courbet" [Hazan, 144 págs., R$ 98]. Neste álbum com mais de uma centena de reproduções, faz uma minuciosa e esclarecedora análise dos quadros, buscando equilibrar a interpretação social e estética da obra do autor de "A Origem do Mundo" (1866) -a tela com o "close-up" escandaloso de uma vagina, que passou pela coleção de Jacques Lacan e hoje está no acervo do Museu d'Orsay.
Apesar de sua inclinação política e até libertária, a grande pintura neoclássica e realista do Oitocentos não irá seduzir a crítica moderna. "Durante todo o século 20, a arte do século 19 caiu numa espécie de purgatório, porque os valores modernos postulavam que a pintura deveria expressar algo de completamente intrínseco a ela mesma, que ela não podia ser impura e se misturar a outros elementos da cultura, por exemplo, a narração literária", explica o historiador.
Para Coli, a crise do modernismo e a emergência do pós-modernismo contribuíram para a mudança na percepção e no entendimento da arte do século 19.
O surgimento da modernidade é também assunto dos ensaios de "O Corpo da Liberdade" e abre o enfoque do historiador para outros universos estéticos, sem abandonar o terreno das artes plásticas. Em "Boulevard des Capucines e o Crime Metafísico", ele faz um excitante contraste entre a representação da vida urbana e a percepção do sujeito moderno na pintura de Monet e nas histórias de detetives, gênero em que demonstra inesperada erudição.
Em "A Semelhança e a Aura - Sobre Proust e Walter Benjamin", Coli dispara uma de suas principais provocações -há várias no livro. À luz da reflexão que Proust desenvolveu a respeito dos objetos artísticos, o historiador questiona a banalizada ideia de Benjamin a respeito da "perda da aura" da obra de arte, em decorrência da reprodução técnica. "Benjamin é um imenso pensador e um grande leitor de Proust, mas resolvi contestá-lo, sim, para levar mais a frente a ideia de obra de arte", diz Coli, que é também colaborador da Folha.
O ponto mais controverso da obra, porém, deverá ser as ideias desenvolvidas no último ensaio, "Como Manifesto, Um Pouco". Nele, o historiador alerta sobre o perigo que o "sentimento de conforto" pode representar para a arte e também ataca o "caráter demagógico" que consiste em classificar diferentes manifestações -futebol, gastronomia, moda etc.- com o mesmo rótulo: "cultura".
"Sapato é um elemento do vestuário; futebol é um esporte; comida, por mais sofisticada, é uma exigência física de sobrevivência. Podem entrar no campo da cultura, se estiverem num filme, se forem motivo para um quadro ou inspiração para um poema. Mas por si mesmos não devem ser chamados de cultura, a não ser naquele sentido antropológico primeiro", escreve.
Coli insiste: não acredita na distinção entre "alta" e "baixa" cultura, mas é preciso separar o que pertence a um "campo cultural complexo" e o que é mera "manifestação da ordem da antropologia". "A gastronomia, por exemplo, tem uma dimensão muito rica, mas, por mais requintado que seja o cozinheiro, é impossível que ele conceba uma 'Divina Comédia' com bacalhau", provoca.

A partir da Revolução Francesa, segundo o historiador, coloca-se pela primeira vez a questão da autonomia do artista em relação aos poderes políticos e religiosos. Jacques-Louis David (1748-1825) é o símbolo dessa mudança


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