São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2010

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ENSAIO

A subversão da economia

Relações incestuosas entre academia, governo e mercado na crise americana

RESUMO
Neste artigo e em filme em exibição na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Charles Ferguson discute os conflitos de interesses na atuação de economistas no governo dos EUA, na universidade e no setor privado, cujo símbolo é o ex-reitor de Harvard e presidente do Conselho Econômico dos EUA Larry Summers.

CHARLES FERGUSON
tradução PAULO MIGLIACCI

O GOVERNO DE BARACK OBAMA anunciou, no final de setembro, que Larry Summers deixaria a presidência do Conselho Econômico Nacional e retornaria à Universidade Harvard até o final deste ano. Sua saída iminente levanta diversas questões: quem o substituirá? O que ele fará a seguir? Porém, mais importante ainda, ela representa uma oportunidade de avaliar os conflitos de interesses imensamente daninhos que afetam os mais importantes economistas acadêmicos quando estes se movimentam entre universidade, governo e setor financeiro.
Summers é inquestionavelmente brilhante, como logo percebem as pessoas que têm contato com ele -entre as quais eu me incluo. No entanto, raramente um indivíduo personificou a tal ponto tudo o que existe de errado na economia, na academia e na economia americana mais especificamente.
Ao longo dos últimos dois anos, fiz um profundo mergulho nesses mundos a fim de realizar um filme, "Trabalho Interno" ["Inside Job", em exibição na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo], que oferece um panorama abrangente sobre a crise financeira. E Summers estava presente por onde quer que eu passasse.

RELACIONAMENTOS Vamos pensar juntos: como economista em ascensão em Harvard e no Banco Mundial, Summers defendeu a privatização e a desregulamentação em muitas áreas, entre as quais a financeira. Mais tarde, como secretário-assistente e, depois, secretário do Tesouro no governo de Bill Clinton, implementou essas políticas.
Summers supervisionou a aprovação da lei que autorizou a fusão para a criação do Citigroup e que permitiu maior consolidação do setor financeiro. Ele também combateu com sucesso os esforços para regulamentar os derivativos financeiros que causariam tanto estrago na bolha da habitação e na crise financeira de 2008.
Larry Summers comandou a aprovação da lei que proibiu, finalmente, toda a regulamentação de derivativos, o que incluiu imunizá-los das leis estaduais de combate aos jogos de azar.
Depois que Summers deixou o governo Clinton, sua candidatura à reitoria de Harvard foi defendida por seu mentor Robert Rubin, antigo presidente-executivo do grupo Goldman Sachs, seu chefe e predecessor no Departamento do Tesouro. Rubin, ao deixar o governo -onde defendeu a lei que tornou legal a criação do Citigroup-, se tornou vice-presidente do conselho desse mesmo grupo e membro muito influente do conselho de Harvard.
Ao longo dos dez últimos anos, Summers continuou a defender a desregulamentação financeira, tanto como reitor quanto como professor em Harvard. Summers enriqueceu trabalhando como consultor e dando palestras em empresas do setor financeiro. Entre 2001 e 2008, ano de seu ingresso no governo Obama, ele faturou mais de US$ 20 milhões junto ao setor financeiro.

A ORIGEM DA BOLHA Summers se manteve próximo de Rubin e Alan Greenspan, antigo presidente do Federal Reserve [Fed, o banco central dos Estados Unidos]. Quando outros economistas começaram a alertar sobre os abusos e o risco no sistema financeiro, Summers fez troça dos comentários e os desconsiderou.
Em 2005, na conferência anual entre dirigentes de bancos centrais dos países, o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Raghuram Rajan, apresentou um brilhante estudo que representou o primeiro alerta proeminente da crise que estava por vir. Rajan apontou que a estrutura de remuneração do setor financeiro, combinada à complexidade de seus produtos, representava um grande incentivo para que seus executivos assumissem riscos com o dinheiro alheio, sem lhes impor penalidades por quaisquer prejuízos subsequentes.
Rajan alertou que essa cultura das bonificações recompensava os executivos financeiros por ações capazes de destruir as instituições que dirigiam, e que isso poderia gerar "uma crise financeira de amplas dimensões" e "um colapso catastrófico".
Quando Rajan concluiu sua fala, Summers se levantou na plateia e o criticou, definindo-o como "luddista" [o luddismo foi um movimento nascido na Inglaterra do século 19 reunindo os que eram contrários à mecanização do trabalho] e advertindo que um reforço na regulamentação reduziria a produtividade do setor financeiro.

HARVARD E AS MULHERES Pouco depois disso, Summers perdeu o posto como reitor de Harvard, em função de um discurso no qual sugeriu que as mulheres talvez fossem biologicamente inferiores aos homens para o trabalho científico. Em outra passagem do mesmo discurso, argumentou que era improvável que a discriminação fosse uma das causas da baixa representação feminina tanto na ciência quanto nos negócios.
Ao que parecia, Summers estava negando até a possibilidade de que tivesse havido décadas, ou na verdade séculos, de discriminação sexual, racial e de outras ordens na sociedade americana e de outros países. Depois que os protestos resultantes forçaram-no a renunciar, Summers manteve seu posto letivo em Harvard e acelerou suas atividades no setor financeiro, recebendo US$ 135 mil por uma palestra.
Então, depois da crise financeira de 2008 e da subsequente recessão, ele recebeu a tarefa de coordenar a política econômica dos Estados Unidos para o novo governo, e agilmente marginalizou aqueles que o contestavam. Sob o comando de Summers, o governo Obama adotou políticas tão favoráveis ao setor financeiro quanto as dos governos Clinton e Bush. Summers jamais se desculpou publicamente ou admitiu qualquer responsabilidade por causar a crise. E, agora, Harvard o está recebendo de volta.
Summers é um caso singular, mas não único. A essa altura, todos estamos familiarizados com o papel dos lobbies e das contribuições para campanhas políticas, e com a porta giratória que separa governo e setor privado. O que poucos americanos compreendem é que essa porta giratória se tornou uma interseção tripla. A carreira de Summers resulta de um escândalo extraordinário e pouco notado pela sociedade americana: a convergência entre a academia, Wall Street e o poder político.
Desde os anos 1980, sob forte influência das teorias econômicas do "laissez-faire", os Estados Unidos vêm desregulamentando seus serviços financeiros. E não demorou muito, depois que o processo começou, para que o país começasse a experimentar crises.
A primeira delas surgiu com os escândalos do mercado de "junk bonds" [os títulos financeiros de alto redimento e alto risco] e das empresas de poupança e crédito imobiliário, nos anos 1980; depois, veio a bolha no setor de internet, no final dos anos 1990; depois a Enron; e, em seguida, a bolha da habitação, que conduziu à crise financeira mundial.
No entanto, ao longo de todo esse período, o setor financeiro dos Estados Unidos cresceu, ganhou poder e se tornou imensamente mais lucrativo. Por volta de 2006, os serviços financeiros respondiam por 40% dos lucros privados americanos. Em larga medida, isso se devia à corrupção do sistema político pelo setor financeiro. Mas, no processo, o estudo da economia também estava sendo subvertido.

TRÍPLICE ALIANÇA Ao longo dos últimos 30 anos, a economia como profissão -nos departamentos de economia universitários, nas empresas, nas instituições públicas e nas escolas de direito- se comprometeu tanto em conflitos de interesse que, agora, funciona quase como um grupo de apoio a setores como os de serviços financeiros e outros, cujos lucros dependem de forma acentuada das políticas governamentais. E não se trata apenas de ideologia; falamos de dinheiro puro e simples.
Economistas acadêmicos de renome (e em certos casos também professores de direito e de administração pública) recebem pagamentos de empresas e grupos de interesse por depoimentos ao Congresso, estudos, palestras, participação em conferências, participação em conselhos corporativos, redação de petições para processos regulatórios, defesa de companhias em casos antitruste e, claro, por seu trabalho de lobby. Trata-se de um negócio que se tornou literalmente bilionário.
O Law and Economics Consulting Group, criado há 22 anos por professores da Universidade da Califórnia em Berkeley é hoje uma empresa de capital aberto avaliada em US$ 300 milhões. Outras organizações especializadas na venda (ou "locação") de conhecimentos acadêmicos especializados são a Competition Policy (hoje Compass Lexecon), o Analysis Group e a Charles River Associates.
Em meu filme, você verá muitos economistas famosos ostentando expressões de desconforto, quando confrontados com suas atividades no setor financeiro. Como Michael Feldstein, por exemplo, professor em Harvard e um dos grandes arquitetos da desregulamentação financeira nos anos Reagan.
Feldstein presidiu por 30 anos o Serviço Nacional de Pesquisa Econômica, e integrou por 20 anos os conselhos da AIG -da qual recebeu mais de US$ 6 milhões- e da AIG Financial Products, cujas transações com derivativos destruíram a própria empresa. Feldstein é autor de centenas de trabalhos acadêmicos, sobre diversos assuntos; nenhum deles trata dos perigos dos derivativos financeiros não regulamentados ou da estrutura de remuneração dos executivos.
Outro exemplo: Frederic Mishkin, professor na escola de administração de empresas da Universidade Columbia e membro do conselho do Fed de 2006 a 2008. Mishkin recebeu US$ 124 mil da Câmara de Comércio da Islândia por um estudo no qual elogiou os sistemas regulatório e bancário islandeses, dois anos antes que o esquema de pirâmide do setor financeiro desabasse, causando prejuízos de US$ 100 bilhões ao país.
E John Campbell, antigo diretor do departamento de economia de Harvard, que encontrou grande dificuldade para explicar por que não deveríamos nos preocupar com os conflitos de interesses dos economistas.
Será que ele pode ter razão? Esses professores estariam sendo pagos simplesmente para dizer o que diriam de qualquer maneira? É improvável. Todos esses professores tampouco parecem fazer declarações políticas contrárias aos interesses financeiros de seus clientes. E todos eles se opõem à divulgação transparente de informações sobre seus relacionamentos comerciais.
As universidades fingem não ver e, deliberadamente, não requerem que seus professores revelem eventuais conflitos de interesse ou reportem renda obtida de outras fontes. Quando Summers foi reitor de Harvard, ele não se esforçou para mudar essa situação.
Agora, porém, Summers está sendo gentilmente excluído do governo e Harvard se prepara para recebê-lo de braços abertos. Como o mundo acadêmico o recepcionará? A resposta resumida: melhor do que ele merece.
Enquanto estava trabalhando no meu filme, escrevi aos reitores e diretores de Harvard e outras universidades, com perguntas detalhadas sobre suas políticas quanto ao conflito de interesses, e solicitei entrevistas sobre o assunto. Nenhum deles respondeu com mais que a recomendação de que visitasse o site da universidade.
A academia precisa, antes de tudo, curar a si mesma.

Nota
Este artigo foi publicado originalmente no site americano "Chronicle of Higher Education", em 3 de outubro de 2010.

Como economista em Harvard e no Banco Mundial, Summers defendeu a privatização e a desregulamentação em muitas áreas, entre as quais a financeira. Mais tarde, no governo de Bill Clinton, implementou essas políticas

Economistas acadêmicos recebem pagamentos de empresas por depoimentos ao Congresso, estudos, palestras, participação em conferências, participação em conselhos corporativos e, claro, por seu lobby


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