São Paulo, domingo, 4 de janeiro de 1998.



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Visão preconceituosa

CARLOS FAGGIN

Tomadas as dez maiores cidades do mundo e analisados os seus núcleos centrais, apenas raras apresentam essas áreas históricas degradadas. No entanto em uma delas, e é São Paulo, a área central ainda não teve o processo de degradação e abandono interrompido. São Paulo é a única grande cidade do mundo que não iniciou o processo de "gentrificação" do centro histórico.
O leitor já imagina que isso não se deve a um único motivo. Para mim, porém, há uma razão que se destaca: o Estado, por intermédio dos órgãos afeitos à preservação do patrimônio histórico, mantém, com certa desconfiança, a iniciativa privada distante das ações de valorização desses bens imóveis arrolados como notáveis.
Isso acontece pelo uso de uma visão ainda autoritária de patrimônio histórico e, mais, por uma aversão quase completa, que o Estado alimenta, à mudança de uso, notadamente para os usos ativos, comerciais, residenciais etc. Se a esse estado de coisas se contrapõe o conceito mais contemporâneo de que o uso de um imóvel é a maneira mais eficiente de conservá-lo, é fácil perceber que não é possível conciliar aquela visão centralizadora e preconceituosa com essa última necessidade.
Não estamos longe de concluir que essa somatória de restrições e autoproclamações de capacidade por parte do Estado seja de fato um forte indutor da demolição clandestina e, em última análise, do abandono e do descaso de que é objeto o centro de São Paulo.
A reversão dessa situação só se dará quando a iniciativa privada se perceber como agente transformador e promotor de reciclagens, reconversões e restauro.
O centro desse raciocínio é a mudança de uso, que se dá de forma natural a partir da compreensão de que o espaço arquitetônico é um fluido. Como todo fluido, o espaço arquitetônico precisa de "contenendores" para adquirir forma, e um dos principais "contenendores" é a função. Quando essa função se encontra culturalmente, sociologicamente ou economicamente superada, tem início a degradação do espaço. Só há uma maneira de impedir esse processo: a mudança de uso, acompanhada da recuperação e da restauração desses imóveis.
A antiga sede da Eletropaulo e seu anexo, na esquina do viaduto do Chá com a rua Xavier de Toledo, estão passando por esse processo de dignificação arquitetônica, depois de esbarrar nas dificuldades peculiares a uma iniciativa pioneira. Outras virão, estou certo; não há o que temer, no exercício de um trabalho competente, se lembrarmos que cerca de 95% dos bens imóveis tombados em São Paulo foram construídos pela iniciativa privada. Assim, ninguém melhor do que ela mesma para valorizá-los e preservá-los.


Carlos Faggin é arquiteto, professor de história da arquitetura na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e autor do projeto de restauração da antiga sede da Eletropaulo.



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