São Paulo, quarta-feira, 28 de novembro de 2007

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ENTREVISTA - DERRICK DE KERCKHOVE


Telefone celular será o computador popular do futuro

"Esqueçam o laptop de US$ 100 de Negroponte", proclama cientista canadense pai da psicotecnologia

Bruno Fernandes/Folha Imagem
O pensador Derrick de Kerckhove, que realizou uma série de palestras no Brasil no início deste mês


RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA

D OUTOR em sociologia da arte e em língua e literatura francesa, Derrick de Kerckhove, canadense nascido na Bélgica em 1944, dirige há mais de 20 anos o Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto. Ele esteve no Brasil no início do mês para uma série de palestras e falou à Folha, em São Paulo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
 

FOLHA - O senhor inventou o termo psicotecnologia. O que é esse conceito e como chegou a ele?
DE KERCKHOVE -
Foi pelas relações com a linguagem. A linguagem está relacionada com nossa mente, com nossos pensamentos. Tem um poder próprio, de ação, de meditação, de ordenação de idéias, quando é escrita. Toda tecnologia de suporte à linguagem é uma psicotecnologia. É uma tecnologia que, via linguagem, conecta o indivíduo, o interior e o exterior. A psicotecnologia é, predominantemente, uma tecnologia da linguagem. E cada vez que muda o suporte para a linguagem, muda a sensibilidade do usuário e da cultura.

FOLHA - Como isso acontece?
DE KERCKHOVE -
Um exemplo é o alfabeto, que criou o ser privado, um sentimento muito forte de si mesmo, de identidade própria. Uma diferença entre o mundo lá de fora, que era objetivo, e essa pessoa aqui, subjetiva. Foi uma mudança poderosa, pois isso não existia na tribo. Na tribo, você era parte dela, você se misturava, mesclava, obedecia aos comandos, respondia às exigências, mas não se abstraía do coletivo. Você estava sempre dentro da tribo ou da família. Na sociedade oral, não havia uma individualidade muito forte, uma referência sobre si mesmo.
Com a psicotecnologia, você tem esse sentimento de forma muito forte. E com a internet você tem o maior casamento mítico de todos, o casamento da velocidade máxima com a complexidade máxima: a complexidade da linguagem e a velocidade da luz. Nós falamos com a velocidade da luz. As psicotecnologias estão constantemente emergindo...
Seja o telefone celular, que concentra toda a história das comunicações em uma pequena máquina que você leva no bolso, ou seja a altíssima complexidade dos supercomputadores ou dos computadores quânticos, que virão no futuro... Ou qualquer software, ou a web 2.0: você pode multiplicar a inteligência conectada na web 2.0 em qualquer configuração. Pode ser a Wikipédia, que é uma forma, ou o del.icio.us ou o furl, que são softwares sociais.
Qualquer variedade de interação humana, software, isso é psicotecnologia. Um blog é uma psicotecnologia, é toda uma nova forma de conectividade entre as pessoas, pois você não apenas coloca lá seus pensamentos e idéia, mas o blog funciona com os comentários dos visitantes... Todas essas coisas estão acontecendo mais rapidamente do que nós conseguimos absorvê-las...
Vivemos hoje a era sem fio, que é também experimentada aqui no Brasil. Pelo que eu já vi, melhor aqui do que em outros lugares do mundo, porque você tem aqui -nos hotéis, pelo menos- um acesso melhor, sem ter de passar pelos rituais exigidos na Europa. É uma sociedade muito conectada...

FOLHA - Mas apenas para pouca gente...
DE KERCKHOVE -
Sim e não. Isso ainda está para ser visto. Há uma discussão hoje sobre conectar as favelas. É preciso ter uma solução, e isso poderia ser testado, pelo menos em uma delas. Sim, eu concordo que muita gente está excluída desse processo, mas é muito menos do que se pensa, se você considerar os telefones celulares. Todo mundo tem telefone...

FOLHA - Pré-pago.
DE KERCKHOVE -
O futuro próximo do telefone celular é ficar mais e mais parecido com um computador. Esqueça Negroponte e seu laptop de US$ 100. O que teremos será um celular de US$ 50, de US$ 20, que vai fazer tudo o que você precisa.
Estou querendo dizer que, na verdade, não há uma divisão digital, mas sim um choque. Os dois grupos se chocam, se encontram. Sim, há enormes distâncias econômicas e sociais, muito fortes. Mas você não pode simplesmente dizer que as duas coisas são iguais. A única relação possível do mundo digital com as contradições sociais e econômicas é no sentido de melhorá-las, de reduzi-las. Além disso, as pessoas da favela, elas estão tendo acesso. Ok, é em LAN houses, mas estão lá.

FOLHA - E qual o impacto disso na vida das pessoas?
DE KERCKHOVE -
Globalização. Quando você carrega o mundo em seu bolso, você é global, querendo ou não, sabendo ou não, gostando ou não. Nós estamos globalizados, nós estamos conectados com o resto do mundo. Nós já estávamos ligados pelas notícias, pela televisão, que traz as notícias do mundo para nossa sala, mostrando a chegada do homem à Lua, mostrando o mundo... Nós fomos socializados pela televisão de uma forma global, com certeza, e é por isso que McLuhan falava da aldeia global. Mas agora nós somos cidadãos globais, cidadãos do mundo. E isso é por causa dessa coisinha que carregamos no nosso bolso.

FOLHA - O cidadão não é mais passivo...
DE KERCKHOVE -
De jeito nenhum, e isso tem sido de grande ajuda para a humanidade, especialmente para as sociedades mais atrasadas, para as pessoas que não sabem escrever. Essas pessoas agora podem falar pelo telefone, conversar, dar e receber notícias, podem perguntar sobre a situação do mercado na área em que eles atuam, enfim, há muita coisa que elas podem fazer.
A sociedade oral está recuperando um pouco do poder e da importância que perdeu para a sociedade letrada. E os aspectos locais são enriquecidos pela conexão global. A aldeia local, onde nós estamos, onde atuamos, trabalhamos, é enriquecida pela dimensão global. Nós funcionamos ao mesmo tempo local e globalmente, e nossa identidade está mudando, nossa sensibilidade está mudando.

FOLHA - E isso é bom?
DE KERCKHOVE -
Sim, é muito positivo. O mundo está mudando, deixando de ser planejado e projetado e organizado, para ser emergente, auto-organizado... Claro que há aspectos negativos... O terrorismo é um aspecto emergente...

FOLHA - E há regras, governos que querem mandar no mundo...
DE KERCKHOVE -
Você tem razão, e isso é um problema, e nós teremos de enfrentar esse problema. A sua personalidade digital é cada vez menos uma propriedade sua, e mais uma propriedade do conjunto. McLuhan costumava dizer: "Quanto mais sabem a seu respeito, menos você existe". Sua persona digital escapa cada vez mais de seu controle. Você não controla sua reputação, você não controla os dados sobre você que são coletados por bancos.
McLuhan dizia que a tecnologia iria nos apagar, apagar o indivíduo e deixar tudo sob o controle do Estado ou de algum sistema regulador, um Big Brother automatizado. Essa possibilidade existe...
Mas a experiência de liberdade... Uma vez que essa idéia entra na sociedade...
Acho que nós vamos nos adaptando, vamos descobrir que podemos manter alguma coisa de nossa identidade ao mesmo tempo em que hiperconectamos. Vamos encontrar uma solução de compromisso, um meio-termo.
Já existe, entre mim e o exterior, entre público e privado. No Facebook, você está público, mas você faz dele um uso particular, ele é de seu uso particular. Isso é bom? Nós já passamos do estágio do bem e do mal.


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