São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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DOIS DOS MAIS PROVOCATIVOS ARTISTAS DOS EUA CONVERSAM SOBRE ENFERMEIRAS, CINEMA E SEXO

Jeremy Blake/Richard Prince

da "Black Book"

Encontrar conexões entre artistas é sempre um exercício delicado. Pelo menos na superfície, as animações sedutoras e mutáveis de Jeremy Blake parecem ter pouco a ver com as sátiras maliciosas de Richard Prince sobre os EUA, mas, olhando de perto, começa a surgir uma série de preocupações mútuas. Ambos põem a nu as contradições entre percepção e realidade, dissecam mitologias populares e desafiam antigas e novas narrativas. Assim como a ousada recriação por Prince dos anúncios do caubói de Marlboro expõe a arquitetura romântica do Oeste americano, o trabalho mais recente de Blake, "Reading Ossie Clark", usa a trágica vida do estilista dos anos 60 como uma crítica oblíqua à falsa promessa de hedonismo do período.

Jeremy Blake - Sua ficção se concentra muito no cinema. Você já dirigiu um filme? Isso lhe interessa?
Richard Prince - O problema de dirigir um filme é que é uma coisa colaborativa. Eu tenho medo de grupos. Pedir permissão para produzir uma coisa não é algo a que eu esteja acostumado. Esperar um sinal verde não daria certo para mim.
Blake - Sim, imagino que um sujeito que dirige carros de corrida não seria apanhado esperando por uma porcaria de sinal verde.
Prince - E sobre sexualidade? Você se vê fazendo um filme de sexo?
Blake - Sim, eu poderia me ver fazendo um filme de sexo, em termos de saber o que eu gostaria de ver acontecer na câmera, gostaria especialmente de expandir a seqüência do orgasmo arco-íris no clássico dos anos 70 "Atrás da Porta Verde". De certa maneira, fiz isso em meu último trabalho. Mas em geral o sexo já está na arte, mesmo que seja subliminar.
Para mim, suas histórias parecem ser um prolongamento das edições visuais em suas fotos de grupos, e o fato de você conseguir passar essa lógica é impressionante. Poderia ser interessante você fazer um filme com a lógica onírica de uma de suas histórias, mas, mais uma vez, acho que seria necessário trabalhar com um grupo. Os grupos também me assustam. Você já tocou numa banda?
Prince - Já fiz parte da banda de Glenn Branca. Como todo mundo. Ele ensinava cada um a tocar sua parte.
Blake - Você lê a crítica de arte?
Prince - Eu leio Truman Capote. Leio Walter Tevis. Leio Joan Didion.
Blake - Você lê críticas de suas exposições?
Prince - Críticas da minha própria obra? Acho que ninguém escreveu críticas do meu trabalho nos últimos cinco anos. Como é ver seu trabalho envolvido em filmes de verdade?
Blake - Paul [Thomas Anderson] é o único diretor com quem trabalhei. Fiquei honrado, porque era um grande fã dele, e também grato, porque, com todos recursos à sua disposição, teria sido possível me eliminar. Uma das minhas coisas favoritas sobre trabalhar em "Embriagados de Amor" foi sair à noite com Paul e o resto da equipe depois do trabalho.
Sua última exposição (na Gladstone Gallery, Nova York) consiste em grandes telas com pinturas de enfermeiras sinuosas extraídas da capa de antigas brochuras. As enfermeiras aparecem e desaparecem em pinceladas translúcidas e cores principalmente quentes e luxuriantes, que são excelentes para agradar ao olhar e provocar ansiedade ao mesmo tempo. Por que tantas enfermeiras? Por que tanta cor ansiosa? Você está doente de alguma coisa?
Prince - Estou me recuperando. Pintando uma coisa que já estava pintada. Minha mãe foi enfermeira, minha tia é enfermeira, eu gosto da palavra "enfermagem". Choque. Erupções. Vesgo. Lábio leporino. Carro-bomba. Odor corporal. Terceira Guerra Mundial. Quando a máscara cirúrgica apareceu, foi quando começaram a fazer sentido. Essa foi minha contribuição. Eu compro livros pela Internet. Eles aparecem no correio. Eles são "remetidos".
Blake - Como o fato de colocar máscaras nas enfermeiras muda o significado das imagens?
Prince - Não havia máscaras nas enfermeiras quando comecei a pintá-las. Foi minha maneira de recuperá-las. Foi minha maneira de contribuir para o que eu tinha escolhido -um acessório natural. Uma maneira de fazê-las ter a mesma aparência.
Qual é seu relacionamento com o público? Você gostaria de ser um sucesso de bilheteria?
Blake - Às vezes tenho vontade de abraçar todo mundo que vem ver minha exposição, por gratidão, e outras tenho a sensação de que as pessoas precisam ver menos arte e fazer mais sexo, ou procurar um analista, ou pelo menos beber alguma coisa além do vinho barato que servem nos vernissages... Algumas vezes, quando estou falando numa faculdade, sinto-me como se estivesse em chamas, e que poderia começar um culto ou formar um exército, e às vezes me sinto como se estivesse realmente roubando os jovens...


NUNCA VI ARTE ON-LINE QUE ME IMPRESSIONASSE, MAS ME LEMBRO COM CARINHO DA ERA DO LASER


Prince - Sua família aparece em seu trabalho?
Blake - Meu pai era um gay decadente e fabricado, freqüentador do Studio 54. Ganhava a vida como corretor de imóveis, por isso passei muito tempo em prédios vazios com ele, sentado no chão e fazendo desenhos. Ele era encantador e sempre um pouco instável, passando pela vida muito rapidamente -mas me incentivou muito no desenho. Minha mãe é uma mulher de duro trato no dia-a-dia -como uma mãe em um de seus quadros-piadas. Ela é supostamente muito espiritual, mas a religião continua mudando, e ela nunca foi simpática com minhas namoradas, então finalmente parei de agüentá-la. A coisa boa que puxei dela foi gostar de ler. Ela me deu os livros de C.S. Lewis e outros que tinham uma espécie de heroísmo romântico -e muita luz e sombra.
Seu trabalho muitas vezes parece uma espécie de cabo-de-guerra com autobiografia -como se a necessidade de descrever simples e diretamente sua experiência estivesse sempre presente, mas equilibrada por uma recusa de sua parte a ser considerado a figura central. O que o motiva a evitar ser considerado a estrela de seu trabalho, quando tantos artistas (Cindy Sherman, Matthew Barney, Sean Landers etc.) não parecem se importar em se promover?
Prince - Estou em meu quarto sozinho. Tenho minhas fotos de publicidade com celebridades no chão. Tenho minhas revistas de motocicletas sobre a mesa. Às vezes aparece uma imagem de caubói numa de minhas revistas assinadas. Há um cartaz do carro que Steve McQueen dirigiu no filme "Bullet" em minha parede. Tenho tudo isso no meu quarto. Posso entrar e sair dele quando quiser. Tenho muito tempo para ser eu mesmo, lá embaixo na cozinha... Por que você mora em Los Angeles, e não em Nova York?
Blake - Originalmente vim para cá trabalhar com P.T. Anderson. Minha contribuição para o filme deveria durar um mês, mas levou seis. Eu prefiro trabalhar em Los Angeles porque tem sol, o aluguel é barato e prefiro a vida social de Nova York. Você não consegue comer aqui depois das 21h30 durante a semana e, embora existam ótimos museus, a maior parte das galerias aqui em Los Angeles tem vergonha de parecer ambiciosa -acho que essa é a maior diferença negativa.
Prince - Qual é a diferença entre ser artista hoje e ontem?
Blake - A tarefa é a mesma no nível pessoal para artistas de qualquer geração: entrar nas cavernas mais escuras da mente, encontrar algo que gostaria de trazer para mostrar e contar, arrastá-lo até a luz para que o resto das pessoas julgue -nunca é fácil. As pessoas da geração "baby boom" eram mais numerosas e tinham mais tabus sociais para combater. Essas coisas em geral ajudavam na atmosfera vital. Minha geração tem menos a ver com quantidade e mais com satélites -pessoas independentes, interiorizadas, que vale a pena conferir enquanto estão tranqüilamente se aperfeiçoando. Beck e P.T. Anderson são bons exemplos em suas respectivas disciplinas.
Prince - Você acha que a arte online vai seguir o caminho da arte a laser e dos hologramas?
Blake - Nunca vi arte on-line que me impressionasse. Mas me lembro com carinho da era do laser. Acho incrível toda aquela coisa conceitual e meio drogada dos anos 60 e 70. Fotorrealismo, escultura plástica a vácuo etc. Em geral também gosto da maioria das formas pop "menores": protetores de tela, videoclipes, telefones celulares musicais, gráficos de videogame antigos, fotos de cabine automática etc. Acho que a maioria dessas formas geralmente foi subestimada, porém, e a web arte foi superestimada, o que a torna aborrecida por antecipação.
Apesar de seu trabalho ser formalmente elegante e produzido em séries muito pensadas, raramente é frio em temperatura. Na verdade, você parece ser atraído por temas que suam para ganhar a vida: caubóis, enfermeiras, comediantes, astros mirins explorados, ciclistas, expressionistas abstratos... Qual é sua relação com toda essa vitalidade?
Prince - A comédia é um bom tema para a arte. Às vezes estou tão mergulhado no subsolo que tenho vertigem. O garotinho perdido se leva muito a sério. Como posso explicar? Dentro do museu o infinito está em constante julgamento. Meus pais me prendiam num armário. Até os 15 anos eu achava que era um terno. Arte tem a ver com dizer a verdade. Não encontrei mais nada que faça isso.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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