São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Ponto de fuga

Cadernos de viagem


Moravia observa e descreve o que vê, tarefa muito mais difícil do que parece; a Brasília que expõe é implacável, uma cidade cujo aspecto irracional remete ao surrealismo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A leitura do caderno Mais! de domingo passado foi um nocaute.
Havia lá largos extratos de três artigos, escritos por Alberto Moravia para o "Corriere della Sera" em 1960. Reúnem impressões de sua visita ao Brasil.
Outros três foram publicados no site www.folha.com.br/090215. Todos provocam vertigem pela elevação da escrita e do pensamento.
Demonstram o que seja, de fato, qualidade estilística, servidos que foram pela ótima transposição em português de Adriana Marcolini. Bom estilo não quer dizer escrever bonito, com palavras floridas e supérfluas. Quer dizer encontrar a expressão justa e heurística, capaz de desencadear no leitor intuições que levam à compreensão mais profunda.
No seu texto sobre Brasília, a pulsão violenta de "penetrar com a força do Estado no interior selvagem do Brasil" vem precedida pela metáfora da carne exposta, do sangue, sugeridos pela terra vermelha que então se desbastava: "Um monte de bifes ensanguentados expostos no balcão de um açougueiro"; "o tom avermelhado de sangue das escavações"; e a mais apocalíptica: em meio à vastidão do planalto, "a cidade caiu como um meteoro em chamas, sacrificando a terra árida com sangue".


A linguagem expressiva é fecundada pelo mais lúcido dos olhares. Moravia observa e descreve o que vê, tarefa muito mais difícil do que parece.
Ao assistir a uma cerimônia xangô no Recife, evoca, minucioso, objetos que estão na sala.
São corriqueiros, copos d'água, flores artificiais, figas, imagens de santos. Logo, porém, essa banalidade sofre uma guinada.
"Mas aí reside a potência da religião: todos esses artefatos grosseiros e sem acabamento, só porque estavam naquela espécie de templo familiar de proporções mínimas, para fins que não eram práticos ou estéticos, mas rituais, assumiam fisionomias misteriosas, esotéricas, mágicas."
Essas frases de Moravia poderiam se aplicar à noção de arte, tal como a concebe o Ocidente. Qualquer objeto pode se tornar religioso, se investido por crença mística. Qualquer objeto pode se tornar artístico, se investido por crença estética. Um mictório, por exemplo, ou uma roda de bicicleta.

Sonhos
Moravia não se deixa fascinar pelo canto de sereias. A Brasília que expõe é implacável: uma cidade cujo aspecto irracional remete ao surrealismo, edifícios de formas extravagantes e banalíssimos em seus interiores.
A cidade que descreve nega a democracia e qualquer humanismo por seu caráter autoritário. A arquitetura impõe "o esmagamento e a aniquilação da figura humana", diz Moravia.
De fato, Brasília foi concebida para automóveis, não para gente. Isso, associado ao seu isolamento, torna difícil qualquer manifestação de rua, qualquer intervenção mais direta da população. É uma espécie de nave espacial que vê o Brasil do alto. Serviu perfeitamente à ditadura militar e aos mirabolantes planos econômicos, impostos por uma tecnoautocracia. A modernidade que a construiu, por mais de esquerda que fosse, nunca teve consciência de sua própria natureza despótica.

jorgecoli@uol.com.br


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