|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
Cadernos de viagem
Moravia observa e descreve o que vê, tarefa muito mais difícil do que parece; a Brasília que expõe é implacável, uma cidade cujo aspecto irracional remete ao surrealismo
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A leitura do caderno
Mais! de domingo passado foi um nocaute.
Havia lá largos extratos de três
artigos, escritos por Alberto
Moravia para o "Corriere della
Sera" em 1960. Reúnem impressões de sua visita ao Brasil.
Outros três foram publicados
no site www.folha.com.br/090215. Todos provocam vertigem pela elevação da escrita e
do pensamento.
Demonstram o que seja, de
fato, qualidade estilística, servidos que foram pela ótima
transposição em português de
Adriana Marcolini. Bom estilo
não quer dizer escrever bonito,
com palavras floridas e supérfluas. Quer dizer encontrar a
expressão justa e heurística, capaz de desencadear no leitor
intuições que levam à compreensão mais profunda.
No seu texto sobre Brasília, a
pulsão violenta de "penetrar
com a força do Estado no interior selvagem do Brasil" vem
precedida pela metáfora da carne exposta, do sangue, sugeridos
pela terra vermelha que então se
desbastava: "Um monte de bifes
ensanguentados expostos no
balcão de um açougueiro"; "o
tom avermelhado de sangue das
escavações"; e a mais apocalíptica: em meio à vastidão do planalto, "a cidade caiu como um
meteoro em chamas, sacrificando a terra árida com sangue".
Fé
A linguagem expressiva é fecundada pelo mais lúcido dos
olhares. Moravia observa e descreve o que vê, tarefa muito
mais difícil do que parece.
Ao assistir a uma cerimônia
xangô no Recife, evoca, minucioso, objetos que estão na sala.
São corriqueiros, copos d'água,
flores artificiais, figas, imagens
de santos. Logo, porém, essa
banalidade sofre uma guinada.
"Mas aí reside a potência da
religião: todos esses artefatos
grosseiros e sem acabamento,
só porque estavam naquela espécie de templo familiar de
proporções mínimas, para fins
que não eram práticos ou estéticos, mas rituais, assumiam fisionomias misteriosas, esotéricas, mágicas."
Essas frases de Moravia poderiam se aplicar à noção de arte, tal como a concebe o Ocidente. Qualquer objeto pode se
tornar religioso, se investido
por crença mística. Qualquer
objeto pode se tornar artístico,
se investido por crença estética. Um mictório, por exemplo,
ou uma roda de bicicleta.
Sonhos
Moravia não se deixa fascinar pelo canto de sereias. A
Brasília que expõe é implacável: uma cidade cujo aspecto irracional remete ao surrealismo, edifícios de formas extravagantes e banalíssimos em
seus interiores.
A cidade que descreve nega a
democracia e qualquer humanismo por seu caráter autoritário. A arquitetura impõe "o esmagamento e a aniquilação da
figura humana", diz Moravia.
De fato, Brasília foi concebida para automóveis, não para
gente. Isso, associado ao seu
isolamento, torna difícil qualquer manifestação de rua, qualquer intervenção mais direta
da população. É uma espécie de
nave espacial que vê o Brasil do
alto. Serviu perfeitamente à ditadura militar e aos mirabolantes planos econômicos, impostos por uma tecnoautocracia. A
modernidade que a construiu,
por mais de esquerda que fosse,
nunca teve consciência de sua
própria natureza despótica.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez+ Próximo Texto: Biblioteca básica: As Metamorfoses Índice
|