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Estados terroristas
Combates
na faixa
de Gaza sugerem que negociações de paz
só serão possíveis após forte pressão internacional
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Não me sinto à vontade escrevendo
sobre a horrenda
situação do Oriente Médio; não
acompanho os acontecimentos
nos pormenores nem conheço
os meandros da luta que ali se
desenvolve.
Mas me sinto moralmente
obrigado a deixar público meu
claro repúdio aos horrores que
ali têm ocorrido e meu temor
de que seus agentes estão se
chafurdando num pântano que
poderá engolir o que nos resta
de humanidade e de confiança
na democracia.
Não posso continuar calado,
mergulhado em minhas obsessões, como se fundamentalistas palestinos e israelenses não
estivessem se matando e emporcalhando a dignidade de
dois povos. Nessas condições o
silêncio é conivente.
Há 60 anos, graças a uma resolução da ONU, foi criado o
Estado de Israel. Uma forte
reação árabe e palestina era esperada, e só poderia haver
perspectiva de paz e progresso
na região se os dois maiores
contendores tirassem vantagens da nova situação, separando a luta pelo Estado nacional
da questão religiosa e cultural.
Aconteceu, porém, o contrário. Desde o início Israel se firma como Estado judeu. Enfrentando resistências, os sionistas de esquerda lutaram por
um Estado leigo, e o confronto
somente amaina quando se
chega a uma situação de compromisso. Israel não conta com
uma Constituição escrita, isto
é, um acordo articulado em que
vários grupos cedem para configurar um fundamento legal a
partir do qual possam resolver
suas contendas. É regido por
um sistema de leis parecido
com a Common Law, obviamente sem a tradição inglesa,
que flexibiliza a norma jurídica
para que um grupo politicamente dominante possa mais
facilmente impor a legitimidade de seu ponto de vista. Nos
últimos anos o Estado israelense de Direito está cada vez mais
sendo sufocado pela intolerância dos fundamentalistas.
Nesse contexto, a extensão
do território nacional se torna
uma questão religiosa. Sabe-se
que o Estado nacional exerce o
monopólio da violência num
determinado território, que, na
sua essência é público, a propriedade privada sendo conformada por ele.
Quando o Estado é religioso,
a terra é dádiva divina, cabe ao
Estado conservá-la tal como o
povo eleito a recebeu de Deus.
No lugar da "res publica" impera a "res divina". Não são mais
o Estado e os cidadãos que possuem a terra, esta é que os passa a possuir como manifestação de sua divindade.
Há mais de 40 anos a esquerda israelense propõe trocar
terra pela paz, mas, até agora, o
território palestino continua a
ser comido pelas bordas, a fim
de que o Grande Israel renasça
de suas cinzas, como se outros
povos nunca tivessem tido direito sobre esse território.
O Estado judeu não pode
conceder plena cidadania a
seus membros. Os palestinos
israelenses foram proibidos de
votar nas próximas eleições
porque podem estar colaborando com o inimigo. E, como a
taxa de natalidade deles é superior à dos israelenses judeus, é
de esperar que seus direitos democráticos sejam cada vez
mais restringidos.
Jerusalém é uma cidade
multirracial e multicultural.
Sagrada para três religiões.
Mas desde 30 de julho de 1980
foi decretada capital indivisa
do Estado de Israel, indiferente
às demandas da população árabe que ali habita e dos acordos
internacionais que asseguraram a fundação desse Estado.
Infelizmente o lado palestino seguiu na mesma direção.
Não se pode colocar no mesmo
saco movimentos nacionalistas
do Oriente Médio e a renovação fundamentalista do islã, a
despeito de estarem cada vez
mais trançados.
Essa confusão é uma triste
herança da era Bush e da revolução iraniana, que cobriu o
verdadeiro conflito político
com o véu ético-religioso da
oposição entre o bem e o mal.
Mas a luta pela instalação de
um Estado palestino é antiga.
Em 1917 os ingleses conquistaram a Palestina do Império
Otomano. E assim começou o
jogo entre aqueles que desejavam independência do novo
território ou sua transformação num novo Estado judeu,
proposto pelos sionistas. Desde
o início a guerrilha se instalou
dos dois lados, sendo hoje inútil procurar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.
Atrocidades foram cometidas pelos dois lados. Não deixo
de me indignar, de tomar partido segundo as circunstâncias,
mas agora me importa salientar a farsa jurídica que Israel e
as organizações palestinas estão praticando para encobrir o
massacre dos povos que representam.
Na guerra contemporânea
não existe mais clara distinção
entre o soldado e o civil. O primeiro não sobrevive sem um
fantástico esforço produtivo do
segundo. Não é à toa que, já na
Segunda Guerra, cidades foram
arrasadas para enfraquecer o
esforço produtivo do inimigo.
Essa indistinção se avoluma
quando a guerrilha se transforma em cruzada, ou intifada,
que converte o martírio no caminho de salvação.
Acuados por todos os lados,
pela violência israelense e pelo
jogo desleal dos Estados árabes, cada vez mais os palestinos
desacreditam nas soluções políticas e se empenham numa
reconquista religiosa das terras
perdidas.
Para eles a existência de um
Estado palestino implica aniquilação do Estado de Israel, o
qual por sua vez responde tentando aniquilar o Hamas.
Mas, de um lado e do outro, a
política continua sendo praticada, mesmo quando, como
nos mostram os últimos episódios, a guerra se faz como a negação dela. Creio que aqui está
um dos pontos nevrálgicos da
questão.
Os movimentos nacionalistas palestino e israelense são
empurrados para o terror. O
inimigo é tanto o soldado como
o civil que o apoia mesmo sem
querer. O voto favorável à guerra ou a indiferença são forças
mais destrutivas do que as armas de combate.
Trava-se uma guerra entre
um Estado constituído e um
Estado em via de constituição.
Israel se orgulha de possuir um
excelente código de ética para
suas Forças Armadas, mas, como declarou o major Jacob Dalla (Folha, suplemento "New
York Times", 26/1), "as pessoas
perdem de vista o contexto de
uma guerra numa área densamente povoada, onde, a cada
vez que uma porta é aberta, um
soldado se pergunta quem pode estar atrás dela".
Mesmo usando a cabeça,
creio eu, é natural atirar no outro indiferenciado. O irracional
é entrar numa guerra desse tipo. E, quando alguém denuncia
o absurdo, posto que os dois lados vestem o manto da religião,
a denúncia é tachada de antissemitismo ou anti-islamismo.
Mas a luta é sobretudo política, embora às vezes se assemelhe a um extermínio tribal. O
direito está servindo sobretudo
para encobrir o uso de métodos
terroristas. O que define a prática jurídico-moral não é o código, mas sua prática. Israel se
nega como Estado ao massacrar civis indefesos.
O Hamas ou o Hizbollah se
negam como movimentos nacionalistas insistindo na guerra
do terror e se recusando a participar de negociações políticas. Não vale negar-lhes o caráter de interlocutores porque
têm inscrito no programa a
destruição do Estado de Israel.
O fato de se sentarem numa
mesa de negociação implica o
reconhecimento do outro como interlocutor político.
Não sejamos porém ingênuos. Tal como a guerra está se
desenvolvendo, uma negociação política somente será possível mediante forte pressão
internacional.
A ONU pouco poderá fazer
sem o apoio decidido dos Estados Unidos. E para que isso se
torne possível, é preciso que se
compreenda que essa guerra é
mais do que um conflito de civilizações, porquanto, além de
pôr em choque diferentes formas de vida, faz com que o Estado de Direito finja existir para encobrir práticas de aniquilação do outro simplesmente
porque é outro.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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