São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Estados terroristas

Combates na faixa de Gaza sugerem que negociações de paz só serão possíveis após forte pressão internacional

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Não me sinto à vontade escrevendo sobre a horrenda situação do Oriente Médio; não acompanho os acontecimentos nos pormenores nem conheço os meandros da luta que ali se desenvolve.
Mas me sinto moralmente obrigado a deixar público meu claro repúdio aos horrores que ali têm ocorrido e meu temor de que seus agentes estão se chafurdando num pântano que poderá engolir o que nos resta de humanidade e de confiança na democracia.
Não posso continuar calado, mergulhado em minhas obsessões, como se fundamentalistas palestinos e israelenses não estivessem se matando e emporcalhando a dignidade de dois povos. Nessas condições o silêncio é conivente.
Há 60 anos, graças a uma resolução da ONU, foi criado o Estado de Israel. Uma forte reação árabe e palestina era esperada, e só poderia haver perspectiva de paz e progresso na região se os dois maiores contendores tirassem vantagens da nova situação, separando a luta pelo Estado nacional da questão religiosa e cultural.
Aconteceu, porém, o contrário. Desde o início Israel se firma como Estado judeu. Enfrentando resistências, os sionistas de esquerda lutaram por um Estado leigo, e o confronto somente amaina quando se chega a uma situação de compromisso. Israel não conta com uma Constituição escrita, isto é, um acordo articulado em que vários grupos cedem para configurar um fundamento legal a partir do qual possam resolver suas contendas. É regido por um sistema de leis parecido com a Common Law, obviamente sem a tradição inglesa, que flexibiliza a norma jurídica para que um grupo politicamente dominante possa mais facilmente impor a legitimidade de seu ponto de vista. Nos últimos anos o Estado israelense de Direito está cada vez mais sendo sufocado pela intolerância dos fundamentalistas.
Nesse contexto, a extensão do território nacional se torna uma questão religiosa. Sabe-se que o Estado nacional exerce o monopólio da violência num determinado território, que, na sua essência é público, a propriedade privada sendo conformada por ele. Quando o Estado é religioso, a terra é dádiva divina, cabe ao Estado conservá-la tal como o povo eleito a recebeu de Deus.
No lugar da "res publica" impera a "res divina". Não são mais o Estado e os cidadãos que possuem a terra, esta é que os passa a possuir como manifestação de sua divindade. Há mais de 40 anos a esquerda israelense propõe trocar terra pela paz, mas, até agora, o território palestino continua a ser comido pelas bordas, a fim de que o Grande Israel renasça de suas cinzas, como se outros povos nunca tivessem tido direito sobre esse território.
O Estado judeu não pode conceder plena cidadania a seus membros. Os palestinos israelenses foram proibidos de votar nas próximas eleições porque podem estar colaborando com o inimigo. E, como a taxa de natalidade deles é superior à dos israelenses judeus, é de esperar que seus direitos democráticos sejam cada vez mais restringidos.
Jerusalém é uma cidade multirracial e multicultural.
Sagrada para três religiões.
Mas desde 30 de julho de 1980 foi decretada capital indivisa do Estado de Israel, indiferente às demandas da população árabe que ali habita e dos acordos internacionais que asseguraram a fundação desse Estado.
Infelizmente o lado palestino seguiu na mesma direção.
Não se pode colocar no mesmo saco movimentos nacionalistas do Oriente Médio e a renovação fundamentalista do islã, a despeito de estarem cada vez mais trançados.
Essa confusão é uma triste herança da era Bush e da revolução iraniana, que cobriu o verdadeiro conflito político com o véu ético-religioso da oposição entre o bem e o mal.
Mas a luta pela instalação de um Estado palestino é antiga.
Em 1917 os ingleses conquistaram a Palestina do Império Otomano. E assim começou o jogo entre aqueles que desejavam independência do novo território ou sua transformação num novo Estado judeu, proposto pelos sionistas. Desde o início a guerrilha se instalou dos dois lados, sendo hoje inútil procurar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.
Atrocidades foram cometidas pelos dois lados. Não deixo de me indignar, de tomar partido segundo as circunstâncias, mas agora me importa salientar a farsa jurídica que Israel e as organizações palestinas estão praticando para encobrir o massacre dos povos que representam.
Na guerra contemporânea não existe mais clara distinção entre o soldado e o civil. O primeiro não sobrevive sem um fantástico esforço produtivo do segundo. Não é à toa que, já na Segunda Guerra, cidades foram arrasadas para enfraquecer o esforço produtivo do inimigo.
Essa indistinção se avoluma quando a guerrilha se transforma em cruzada, ou intifada, que converte o martírio no caminho de salvação.
Acuados por todos os lados, pela violência israelense e pelo jogo desleal dos Estados árabes, cada vez mais os palestinos desacreditam nas soluções políticas e se empenham numa reconquista religiosa das terras perdidas.
Para eles a existência de um Estado palestino implica aniquilação do Estado de Israel, o qual por sua vez responde tentando aniquilar o Hamas.
Mas, de um lado e do outro, a política continua sendo praticada, mesmo quando, como nos mostram os últimos episódios, a guerra se faz como a negação dela. Creio que aqui está um dos pontos nevrálgicos da questão.
Os movimentos nacionalistas palestino e israelense são empurrados para o terror. O inimigo é tanto o soldado como o civil que o apoia mesmo sem querer. O voto favorável à guerra ou a indiferença são forças mais destrutivas do que as armas de combate.
Trava-se uma guerra entre um Estado constituído e um Estado em via de constituição.
Israel se orgulha de possuir um excelente código de ética para suas Forças Armadas, mas, como declarou o major Jacob Dalla (Folha, suplemento "New York Times", 26/1), "as pessoas perdem de vista o contexto de uma guerra numa área densamente povoada, onde, a cada vez que uma porta é aberta, um soldado se pergunta quem pode estar atrás dela".
Mesmo usando a cabeça, creio eu, é natural atirar no outro indiferenciado. O irracional é entrar numa guerra desse tipo. E, quando alguém denuncia o absurdo, posto que os dois lados vestem o manto da religião, a denúncia é tachada de antissemitismo ou anti-islamismo.
Mas a luta é sobretudo política, embora às vezes se assemelhe a um extermínio tribal. O direito está servindo sobretudo para encobrir o uso de métodos terroristas. O que define a prática jurídico-moral não é o código, mas sua prática. Israel se nega como Estado ao massacrar civis indefesos.
O Hamas ou o Hizbollah se negam como movimentos nacionalistas insistindo na guerra do terror e se recusando a participar de negociações políticas. Não vale negar-lhes o caráter de interlocutores porque têm inscrito no programa a destruição do Estado de Israel.
O fato de se sentarem numa mesa de negociação implica o reconhecimento do outro como interlocutor político.
Não sejamos porém ingênuos. Tal como a guerra está se desenvolvendo, uma negociação política somente será possível mediante forte pressão internacional.
A ONU pouco poderá fazer sem o apoio decidido dos Estados Unidos. E para que isso se torne possível, é preciso que se compreenda que essa guerra é mais do que um conflito de civilizações, porquanto, além de pôr em choque diferentes formas de vida, faz com que o Estado de Direito finja existir para encobrir práticas de aniquilação do outro simplesmente porque é outro.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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