São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Jogatina de bola

Inserção do futebol inglês na economia internacional transformou as equipes em marcas, e as próprias torcidas se tornaram um capital de marketing


O setor financeiro quer o pacote completo: um senso de história, o rugido dos torcedores leais, a sensação de excitação

Robinho resumiu essa nova realidade ao declarar, na chegada ao Manchester, o quanto estava satisfeito por jogar no Chelsea


DAVID RUNCIMAN

Quando era mais moço, eu torcia por um time de futebol, que já não existe, o Wimbledon FC. A equipe jogava no Plough Lane, estádio pequeno e cambaio em uma parte feia do sul de Londres, e seu estilo de futebol era duro e robusto.
Isso desagradava os adversários, mas aquecia o coração dos torcedores, especialmente quando permitia que a equipe superasse times mais sofisticados e fastidiosos, que muitas vezes jogavam lá como se tivessem pregadores de roupa nos narizes.
Quando o Wimbledon foi convidado a integrar a Football League, em 1977, na quarta divisão na época, passei a me considerar torcedor e a fazer a longa jornada até o final da linha District, para assistir a partidas contra equipes como o Rochdale e o Darlington.
Após apenas duas temporadas na quarta divisão, o time conseguiu subir para a terceira, mas caiu de volta na temporada seguinte. O mesmo fenômeno se repetiu nas duas temporadas subsequentes, com ascenso seguido de descenso.
No começo dos anos 80, o Wimbledon, que atraía públicos regulares de apenas alguns milhares de torcedores e punha em campo uma equipe de jogadores sólidos, mas não espetaculares, parecia ter encontrado o seu lugar no futebol.
Mas então aconteceu algo completamente inesperado. O Wimbledon subiu em 1983, e isso foi seguido não por uma queda mas por novo ascenso; depois de duas temporadas reconhecendo o terreno na segunda divisão, o time subiu ainda uma vez, chegando à primeira divisão.
Subitamente, eu estava indo a Plough Lane para ver o Wimbledon enfrentar equipes como o Manchester United, o Arsenal e o Liverpool.

Azarão
Mas, surpreendentemente, o Wimbledon se deu bem na primeira divisão e manteve seu posto entre os grandes times do país por inacreditáveis 14 temporadas. Em 1991, o time teve de se mudar para o estádio de Selhurst Park, dividido com o Crystal Palace, quando se tornou claro que Plough Lane não poderia ser adaptado.
Um ano mais tarde, o nome da primeira divisão passou a ser Premier League, e o dinheiro começou a fluir ainda mais para os grandes clubes, o que tornava a posição do Wimbledon, uma equipe que nem mesmo tinha estádio próprio, ainda mais precária.
E, como todos os times pequenos, teve que vender muitos de seus melhores jogadores.
Um desses era John Fashanu. Ele disputou a partida que capturava o absurdo essencial da história do Wimbledon, tanto para os torcedores do time quanto para seus rivais: a final da copa da Football Association de 1988, na qual enfrentaram o Liverpool, então o melhor time da Inglaterra, e o derrotaram por um a zero.
Nas temporadas seguintes, comecei a perder o interesse pelo Wimbledon e a assistir cada vez menos jogos.
Quando me perguntavam por que deixara de torcer por eles, às vezes respondia que não fazia muito sentido continuar torcendo depois que o time conquistou a copa da FA, mas percebia o quanto isso soava pedante e estúpido, e por isso desisti de explicar. Ainda assim, fiquei feliz por não ser um verdadeiro torcedor de futebol quando testemunhei o que aconteceu com o Wimbledon.
As novas realidades financeiras do futebol inglês -aqueles que já têm muito receberão ainda mais, e os demais terão de lutar pelas migalhas- finalmente se fizeram sentir na equipe na temporada de 1999/ 2000, quando o time foi rebaixado da Premier League.
Incapazes de obter licenças de construção ou financiamentos para a construção de um novo estádio para o time no sul de Londres, os proprietários surgiram com a radical proposta de transferir o time a outro lugar, no qual pudessem expandir sua base de torcedores e garantir o futuro do clube. Para indignação e consternação dos torcedores da equipe na região sul de Londres, o local escolhido foi Milton Keynes, uma cidade de rápido crescimento no centro da Inglaterra, que não contava com um time de futebol profissional.
Para surpresa de ninguém, assim que se tornou claro que a equipe estava planejando abandonar seus torcedores locais, a torcida desapareceu do estádio, e a situação financeira do Wimbledon se agravou ainda mais. Em 2003, o clube entrou em concordata.
No ano seguinte, mandando suas partidas no estádio nacional de hóquei sobre a grama de Milton Keynes, o time voltou a ser rebaixado, para a League One, antiga terceira divisão.
Àquela altura, o Wimbledon FC foi adquirido por um empresário musical morador de Milton Keynes, Pete Winkelman, que mudou o nome do time para MK Dons.
Em 2006, o MK Dons voltou a cair, para a League Two, a velha quarta divisão por meio da qual a equipe iniciara sua jornada no futebol profissional menos de 30 anos antes.
Nenhuma equipe da liga inglesa havia sido afastada de seus torcedores pelos proprietários, como ocorreu nesse caso, ainda que episódios semelhantes tenham se repetido inúmeras vezes nos EUA, onde times são transferidos para o outro lado do país por proprietários em busca de mercados novos e mais lucrativos.
Assim, a transferência do pequeno Wimbledon para uma cidade localizada a 110 quilômetros de distância parecia indicar a iminente americanização do futebol inglês, que colocaria lealdades tradicionais à mercê de empresários enxeridos para os quais um time é nome e nada mais.
Observando a situação, passados quatro anos, fica claro que os torcedores tinham motivos para preocupação, ainda que estivessem preocupados com a coisa errada. A transferência geográfica jamais foi uma opção séria para times de futebol inglês, porque não existem muitos locais do país em que não exista um time.

Mais que estilo de vida
Mesmo assim, apesar das dificuldades inerentes que afastar um time de futebol inglês de sua origem geográfica acarreta, os enxeridos chegaram.
Um ano antes que Winkelman adquirisse o Wimbledon, outro empresário de sucesso, Roman Abramovich, tomou o controle do vizinho Chelsea e iniciou o processo que faria do time uma potência do futebol internacional, tratando-o o tempo todo como uma espécie de brinquedinho pessoal.
Desde então, quase todos os grandes times ingleses tiveram seu controle tomado por estrangeiros. Manchester United, Liverpool e Aston Villa são controlados por americanos.
No Arsenal, há uma disputa pelo controle entre o norte-americano Stan Kroenke e o magnata uzbeque Alisher Usmanov. O West Ham pertence a islandeses, ainda que no momento provavelmente esteja em mãos dos credores do sistema bancário falido da Islândia.
O Portsmouth parece pertencer ao russo Aleksandr Gaydamak (embora ninguém saiba ao certo). E, há pouco, o Manchester City foi adquirido pelo Abu Dhabi United Group for Investment and Development, o que o torna o time mais rico do mundo -ou ao menos o time com os mais ricos proprietários do mundo, o que pode não ser a mesma coisa.
Nenhum desses times precisou se mudar para seguir o dinheiro. Em lugar disso, o dinheiro foi até eles. O que esses novos proprietários parecem desejar do futebol inglês é uma participação em um negócio glamouroso e dinâmico, com vasto apelo mundial.
Isso significa que muitos times da Premier League se mudaram, nos últimos anos, sem que precisassem transferir suas instalações físicas: simplesmente se mudaram para a economia internacional, onde podem ser comercializados como marcas internacionais.
De fato, para fins de marketing, raízes locais são importantes: clubes como o Manchester City, com base de torcedores apaixonados, são ótimo veículo para proprietários com ambições que se estendem para além de Manchester.
Pois na TV parece melhor ter um estádio lotado de torcedores que parecem de fato envolvidos com o time do que um estádio no qual os torcedores começaram a tratar o time como uma espécie de acessório de estilo de vida, mais ou menos como os proprietários o fazem.
Isso, aliás, vem sendo um problema para o Chelsea e um dos motivos para que a equipe ainda não consiga se equiparar aos times mais tradicionais em termos de apelo internacional.
O setor financeiro internacional quer o pacote completo, quando se trata dos times de futebol: um senso de história, o rugido dos torcedores leais, a sensação de excitação.
O nome de maneira nenhuma é a essência da marca, e talvez seja algo dispensável ou ajustável.
Quando os novos proprietários do Manchester City começaram a alardear sua aquisição, usavam as camisas azuis do time, mas dotadas da inscrição Abu Dhabi, nas costas.
A verdade é que é mais provável que um time chamado Abu Dhabi United termine jogando em Manchester do que vermos o Manchester City jogando em Abu Dhabi.
O primeiro astro a ser recrutado com o dinheiro árabe, o brasileiro Robinho, adquirido do Real Madri pela quase inacreditável soma de 32,5 milhões, resumiu essa nova realidade ao declarar, na chegada a Manchester, o quanto estava satisfeito por ser parte do time do Chelsea.
Na verdade, não importa muito que os jogadores não saibam onde estão, desde que os torcedores estejam lá para recebê-los. O que esses novos proprietários desejam é um clube com senso claro de identidade, em torno da qual possam construir suas elaboradas fantasias pessoais.
Ou seja, os torcedores ainda valem alguma coisa.

Novo Wimbledon
É claro que a raiva não se dissipou na parte sul de Londres, mas em 2002 os torcedores mais radicais do Wimbledon FC criaram um novo time em seu lugar, o AFC Wimbledon, que também está em ascensão.
A equipe já passou por quatro níveis de ascenso e agora está só dois degraus abaixo do futebol profissional. Não é impossível que o MK Dons reproduza a ascensão espantosa do Wimbledon FC e chegue à Premier League. Isso ainda acontece, como demonstrou o Hull City ao subir quatro divisões em apenas cinco temporadas.
Equipes como a do MK Dons e a do Hull dependem do apoio local, de boa gestão e de muita sorte. Mas dificilmente se beneficiarão de sorte como a que o Manchester City desfruta.
Não sei como eu me sentiria quanto a essa perspectiva se torcesse pelo time. Essa ideia me parece desconfortavelmente próxima de um insulto àquilo que o futebol verdadeiro representa. Mas eu não sou um verdadeiro torcedor.


DAVID RUNCIMAN é professor de ciência política na Universidade de Cambridge. A íntegra deste texto saiu no "London Review of Books".
Tradução de Paulo Migliacci.


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