|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+Cultura
Proletários do alto-mar
Sob uma ótica marxista,
autor vê
piratas
como uma sociedade "invertida"
e contra
o status quo
JEAN BIRBAUM
Eles não conhecem pátrias nem fronteiras.
Sua bandeira negra
flutua em alto-mar em
toda parte onde Estado e direito naufragam. Esses
fora-da-lei nascem pobres e
morrem jovens. Nós os chamamos de "piratas", e, no Caribe
-no passado- e ao largo da Somália -hoje-, eles alimentam
imaginários contraditórios.
Para alguns, esses corsários
não passam de bandidos movidos pelos instintos mais baixos:
venalidade, pulsão de morte,
ódio à civilização.
Para outros, os piratas são
heróis da liberdade que desafiam a ordem instalada e os poderosos do mundo inteiro.
Por essas razões a longa epopeia dos piratas vem despertando interesse renovado entre
certos militantes e teóricos altermundialistas.
Enquanto as formas de mobilização partidárias parecem
estar em grande medida desacreditadas, eles releem essa velha história dentro de uma análise libertária e veem a ação dos
piratas como exemplo de uma
resistência tríplice: à globalização mercante, à disciplina dos
corpos e ao governo das almas.
Tradição marxista
É esse o pensamento do historiador americano Marcus
Rediker, professor na Universidade de Pittsburgh, e autor de
"A Hidra de Muitas Cabeças"
[tradução de Berilo Vargas,
Companhia das Letras, 428
págs., R$ 58] e "Pirates de Tous
les Pays - L'Âge d'Or de la Piraterie Atlantique (1716-26) [Piratas de Todos os Países - A
Época de Ouro da Pirataria
Atlântica, ed. Libertalia, 288
págs., 16, R$ 48].
"A Hidra de Muitas Cabeças"
é coassinado por Peter Linebaugh, historiador da Justiça e
da criminalidade; ele relata a
formação de um "proletariado
atlântico" entre os séculos 16 e
18. Já "Piratas de Todos os Países" se concentra no decênio
de 1716 a 1726, considerado a
"era de ouro" dos bucaneiros.
Mas ambos são escritos pela
mesma pena, mergulhada na
tradição do marxismo anglo-saxão, o de Edward P. Thompson e Eric Hobsbawm.
Os arquivos abundam, as referências proliferam, mas cada
documento é colocado a serviço de uma única epopeia: a dos
pequenos, dos condenados e
dos "subalternos", essa história
das margens, escrita "desde
baixo" e que seria constantemente oculta pela implacável
narrativa dos dominantes.
Rediker e Linebaugh admitem que eles estiveram por
muito tempo a serviço de mercadores e governos, que os manipulavam para acertar suas
próprias contas.
Progressivamente, porém, à
medida que os intercâmbios
comerciais foram se intensificando, o ativismo dos piratas
foi se tornando cada vez mais
parasitário.
E em 1713, quando chegou ao
fim a guerra da sucessão espanhola, que opôs a Espanha e a
França, de um lado, a uma coalizão anglo-holandesa, do outro, todas as condições se uniram para levar os piratas a se
radicalizarem.
Bandeira negra
De fato, a desmobilização
maciça das Marinhas, a expiração dos contratos de mercenários e o colapso do comércio
obrigaram o "proletário" do alto-mar a aceitar condições de
trabalho cada vez piores.
Veio daí a multiplicação de
revoltas e motins.
Traçando um paralelo com o
espaço da produção manufatureira, os autores descrevem os
navios como lugar de exploração extrema, que exerce seu papel no surgimento simultâneo
do capitalismo moderno e de
um proletariado desejoso de
escapar dele.
Desertar dessa colônia penal
flutuante à qual vários tinham
sido levados à força significava,
para muitos, aderir à "bandeira
negra" -declarar guerra ao
mundo inteiro.
Pois o navio corsário formava uma sociedade invertida, um
universo "virado do avesso", segundo Rediker e Linebaugh:
era igualitário num tempo de
hierarquias, reivindicava o cosmopolitismo no tempo dos Estados-nações, tendia à democracia num período que não conheceu democracia nenhuma,
libertava os escravos numa
época de explosão do tráfico
negreiro...
Comuna flutuante
Em volta de um grande jarro
de ponche, todas as origens
misturadas, os piratas dividiam
seu butim, elegiam seu capitão
e discutiam antes de tomar
uma decisão.
Seria a comuna a bordo de
navios? Sovietes flutuantes? É
difícil acreditar inteiramente.
Em suma, os piratas gostavam de contar histórias -como
gostam todos os que hoje os colocam no cerne de sua esperança. O essencial reside nisso: na
continuidade de um mito relançado de século em século, e
que a caça aos corsários, exigida
pelos comerciantes e depois orquestrada pelos governos, jamais vai conseguir eliminar.
Os piratas "capturaram o
barco do imaginário popular",
escreve Rediker, "e, 300 anos
mais tarde, não parecem estar
dispostos a devolvê-lo".
Diante da narrativa socialista
tradicional, respaldada na velha figura do trabalhador industrial, essa lenda marítima
exibe outra história: a que opõe
ao operário marxista um bandido libertário, ou seja, um degradado revoltado, cuja atitude se
distingue por "um igualitarismo brutal e improvisado", segundo Rediker.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain .
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site
www.alapage.com
Texto Anterior: +Sociedade: A era das multidões Próximo Texto: Cultura econômica Índice
|