São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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+Cultura

Proletários do alto-mar

Sob uma ótica marxista, autor vê piratas como uma sociedade "invertida" e contra o status quo

JEAN BIRBAUM

Eles não conhecem pátrias nem fronteiras. Sua bandeira negra flutua em alto-mar em toda parte onde Estado e direito naufragam. Esses fora-da-lei nascem pobres e morrem jovens. Nós os chamamos de "piratas", e, no Caribe -no passado- e ao largo da Somália -hoje-, eles alimentam imaginários contraditórios.
Para alguns, esses corsários não passam de bandidos movidos pelos instintos mais baixos: venalidade, pulsão de morte, ódio à civilização. Para outros, os piratas são heróis da liberdade que desafiam a ordem instalada e os poderosos do mundo inteiro. Por essas razões a longa epopeia dos piratas vem despertando interesse renovado entre certos militantes e teóricos altermundialistas.
Enquanto as formas de mobilização partidárias parecem estar em grande medida desacreditadas, eles releem essa velha história dentro de uma análise libertária e veem a ação dos piratas como exemplo de uma resistência tríplice: à globalização mercante, à disciplina dos corpos e ao governo das almas.

Tradição marxista
É esse o pensamento do historiador americano Marcus Rediker, professor na Universidade de Pittsburgh, e autor de "A Hidra de Muitas Cabeças" [tradução de Berilo Vargas, Companhia das Letras, 428 págs., R$ 58] e "Pirates de Tous les Pays - L'Âge d'Or de la Piraterie Atlantique (1716-26) [Piratas de Todos os Países - A Época de Ouro da Pirataria Atlântica, ed. Libertalia, 288 págs., 16, R$ 48].
"A Hidra de Muitas Cabeças" é coassinado por Peter Linebaugh, historiador da Justiça e da criminalidade; ele relata a formação de um "proletariado atlântico" entre os séculos 16 e 18. Já "Piratas de Todos os Países" se concentra no decênio de 1716 a 1726, considerado a "era de ouro" dos bucaneiros.
Mas ambos são escritos pela mesma pena, mergulhada na tradição do marxismo anglo-saxão, o de Edward P. Thompson e Eric Hobsbawm. Os arquivos abundam, as referências proliferam, mas cada documento é colocado a serviço de uma única epopeia: a dos pequenos, dos condenados e dos "subalternos", essa história das margens, escrita "desde baixo" e que seria constantemente oculta pela implacável narrativa dos dominantes.
Rediker e Linebaugh admitem que eles estiveram por muito tempo a serviço de mercadores e governos, que os manipulavam para acertar suas próprias contas. Progressivamente, porém, à medida que os intercâmbios comerciais foram se intensificando, o ativismo dos piratas foi se tornando cada vez mais parasitário.
E em 1713, quando chegou ao fim a guerra da sucessão espanhola, que opôs a Espanha e a França, de um lado, a uma coalizão anglo-holandesa, do outro, todas as condições se uniram para levar os piratas a se radicalizarem.

Bandeira negra
De fato, a desmobilização maciça das Marinhas, a expiração dos contratos de mercenários e o colapso do comércio obrigaram o "proletário" do alto-mar a aceitar condições de trabalho cada vez piores. Veio daí a multiplicação de revoltas e motins.
Traçando um paralelo com o espaço da produção manufatureira, os autores descrevem os navios como lugar de exploração extrema, que exerce seu papel no surgimento simultâneo do capitalismo moderno e de um proletariado desejoso de escapar dele.
Desertar dessa colônia penal flutuante à qual vários tinham sido levados à força significava, para muitos, aderir à "bandeira negra" -declarar guerra ao mundo inteiro.
Pois o navio corsário formava uma sociedade invertida, um universo "virado do avesso", segundo Rediker e Linebaugh: era igualitário num tempo de hierarquias, reivindicava o cosmopolitismo no tempo dos Estados-nações, tendia à democracia num período que não conheceu democracia nenhuma, libertava os escravos numa época de explosão do tráfico negreiro...

Comuna flutuante
Em volta de um grande jarro de ponche, todas as origens misturadas, os piratas dividiam seu butim, elegiam seu capitão e discutiam antes de tomar uma decisão.
Seria a comuna a bordo de navios? Sovietes flutuantes? É difícil acreditar inteiramente. Em suma, os piratas gostavam de contar histórias -como gostam todos os que hoje os colocam no cerne de sua esperança. O essencial reside nisso: na continuidade de um mito relançado de século em século, e que a caça aos corsários, exigida pelos comerciantes e depois orquestrada pelos governos, jamais vai conseguir eliminar. Os piratas "capturaram o barco do imaginário popular", escreve Rediker, "e, 300 anos mais tarde, não parecem estar dispostos a devolvê-lo".
Diante da narrativa socialista tradicional, respaldada na velha figura do trabalhador industrial, essa lenda marítima exibe outra história: a que opõe ao operário marxista um bandido libertário, ou seja, um degradado revoltado, cuja atitude se distingue por "um igualitarismo brutal e improvisado", segundo Rediker.

A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .


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