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Cristãos a qualquer custo
Livro do historiador Lucien Febvre investiga as manifestações da religião católica
no século 16
a partir
da obra do francês Rabelais
AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O livro "O Problema
da Incredulidade
no Século 16 - A
Religião de Rabelais" foi escrito em
1942 por Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores, em
1929, de uma nova corrente e
respectiva revista dentro da
historiografia francesa ("Annales d'Histoire Économique et
Sociale"), ampliada em 1946
[leia texto nesta página].
Ela não se limitaria a parafrasear os documentos de maneira acrítica, mas, depois de
situá-los enquanto tais, discutiria, a partir deles, questões
concretas.
Sem escolha
A questão que Febvre escolheu e que dá o título à obra
-"livro difícil e quase desencorajador [no começo] por suas
sinuosidades eruditas, [que] é
como as silenes, caixinha de finas drogas, como bálsamo, âmbar-gris, amomo, almíscar, civeta, pedrarias e outras coisas
preciosas", diz o posfácio de
Denis Crouzet- não é sobre o
grande satirista, frade e médico
francês François Rabelais
(1494-1553, autor de "Gargantua e Pantagruel") nem sobre
sua obra em si, mas sobre como
ambos são veículos para alcançar o pensamento da época,
conforme aponta Hilário Franco Jr. em sua apresentação.
Essa é a conclusão a que chega Febvre (numa amostra da
escrita desenvolta dos "Annales") quanto aos limites da incredulidade na vida no século
16 -século "ainda não da razão,
mas o da sombra e o da luz interpenetrando-se": "Hoje escolhe-se. Ser cristão ou não. No
século 16 não havia escolha".
"Era-se cristão de fato. Podia-se vaguear em pensamento
longe do Cristo: jogos de imaginação, sem suporte vivo de realidade. Mas não se podia nem
sequer se abster de praticar."
"Se se quisesse ou não, se se
percebesse claramente ou não,
as pessoas achavam-se mergulhadas desde o nascimento
num banho de cristianismo do
qual não se evadiam nem mesmo na morte: pois essa morte
era cristã, necessária e socialmente, pelos ritos a que ninguém podia furtar-se -mesmo
se revoltado diante da morte,
mesmo se houvesse zombado e
se tivesse feito de brincalhão
em seus últimos momentos."
E quanto à incredulidade em
Rabelais?
Depois de tantas mistificações e desmistificações, minuciosamente esquadrinhadas
por Febvre, dos estudiosos
franceses que se debruçaram
sobre seus feitos e suas obras,
ora equivocados, ora apressados em suas asseverações do
ateísmo rabelaisiano, o autor
acaba, sabiamente, por dar a
palavra ao próprio Rabelais.
Ele, várias vezes enquanto
escritor e crítico aguçado de
certas vivências do cristianismo, e aqui, enquanto frei François da Ordem dos Irmãos Menores no convento de Fontenay-le-Comte, sobe ao púlpito
e assim se manifesta:
"A imortalidade da alma,
meus irmãos? Devemos crer
nela, a igreja no-lo ordena; mas
a razão humana não nos convence disso... Como nos provaria ela, essa razão débil, por
quais argumentos nos tornaria
certos de que a alma racional é
uma forma que subsiste por si
mesma, uma forma capaz de
existir sem corpo?"
"E se vos dizem, por outro lado, "a imortalidade é necessária
para que os maus sejam punidos e os justos, recompensados", quem provará e como algum dia se provará racionalmente que existe na verdade
um Supremo Justiceiro?"
"Não: da imortalidade pessoal das almas, assim como da
Providência divina, nenhuma
prova verdadeira nos torna seguros. A razão pode mostrar
que a imortalidade é possível;
que é provável; que é infinitamente desejável e, sob certos
aspectos, necessária. Mas cabe
à fé, apenas à fé, fazer o resto."
Anacronismo
Como queríamos dizer, após
a crítica cerrada (talvez demais) dos testemunhos e testemunhas que falaram de Rabelais, bem ou mal -ou seja, do
Livro Segundo em diante-, a
obra de Febvre torna-se, além
de interessante, atraente.
Como eram vistos os milagres, a alma, o ocultismo, a filosofia, as manifestações da vida
do século 16 na própria época?
Recai-se aqui, entretanto, em
uma questão metodológica cuja discussão é sempre atual.
O próprio Mikhail Bakhtin,
autor do clássico "A Cultura
Popular na Idade Média e no
Renascimento" (também, como o livro de Febvre, escrito
como tese acadêmica e pesquisado por anos antes de ter sua
primeira publicação em russo,
em 1941), já tinha chamado a
atenção, em sua introdução,
quanto à importância de não se
estudarem os fenômenos (no
caso do Rabelais de Bakhtin, da
expressão da cultura cômica
popular da Idade Média) "à luz
das regras culturais, estéticas e
literárias da época contemporânea", ou seja, de não os modernizar, para não os interpretar erroneamente.
Mas Febvre acata a transformação dessa advertência em
verdadeiro postulado, segundo
o qual -diz Franco Jr.- o anacronismo é "o pecado dos pecados e, entre todos os pecados, o
irremissível".
Entretanto, conclui o apresentador, o próprio autor não
consegue ficar isento de seu
quadro histórico (como ninguém, aliás): "O Rabelais que
Febvre apresenta é agente histórico que age em um puro presente, totalmente contemporâneo a si mesmo, uma eucronia
ideal criada pelo historiador e
que se revela anacronismo".
AURORA F. BERNARDINI leciona teoria literária e literatura comparada na USP.
O PROBLEMA DA INCREDULIDADE NO SÉCULO 16
Autor: Lucien Febvre
Tradução: Maria Lucia Machado
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 66 (520 págs.)
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