São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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Cristãos a qualquer custo

Livro do historiador Lucien Febvre investiga as manifestações da religião católica no século 16 a partir da obra do francês Rabelais

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro "O Problema da Incredulidade no Século 16 - A Religião de Rabelais" foi escrito em 1942 por Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores, em 1929, de uma nova corrente e respectiva revista dentro da historiografia francesa ("Annales d'Histoire Économique et Sociale"), ampliada em 1946 [leia texto nesta página].
Ela não se limitaria a parafrasear os documentos de maneira acrítica, mas, depois de situá-los enquanto tais, discutiria, a partir deles, questões concretas.
Sem escolha
A questão que Febvre escolheu e que dá o título à obra -"livro difícil e quase desencorajador [no começo] por suas sinuosidades eruditas, [que] é como as silenes, caixinha de finas drogas, como bálsamo, âmbar-gris, amomo, almíscar, civeta, pedrarias e outras coisas preciosas", diz o posfácio de Denis Crouzet- não é sobre o grande satirista, frade e médico francês François Rabelais (1494-1553, autor de "Gargantua e Pantagruel") nem sobre sua obra em si, mas sobre como ambos são veículos para alcançar o pensamento da época, conforme aponta Hilário Franco Jr. em sua apresentação.
Essa é a conclusão a que chega Febvre (numa amostra da escrita desenvolta dos "Annales") quanto aos limites da incredulidade na vida no século 16 -século "ainda não da razão, mas o da sombra e o da luz interpenetrando-se": "Hoje escolhe-se. Ser cristão ou não. No século 16 não havia escolha". "Era-se cristão de fato. Podia-se vaguear em pensamento longe do Cristo: jogos de imaginação, sem suporte vivo de realidade. Mas não se podia nem sequer se abster de praticar."
"Se se quisesse ou não, se se percebesse claramente ou não, as pessoas achavam-se mergulhadas desde o nascimento num banho de cristianismo do qual não se evadiam nem mesmo na morte: pois essa morte era cristã, necessária e socialmente, pelos ritos a que ninguém podia furtar-se -mesmo se revoltado diante da morte, mesmo se houvesse zombado e se tivesse feito de brincalhão em seus últimos momentos."
E quanto à incredulidade em Rabelais? Depois de tantas mistificações e desmistificações, minuciosamente esquadrinhadas por Febvre, dos estudiosos franceses que se debruçaram sobre seus feitos e suas obras, ora equivocados, ora apressados em suas asseverações do ateísmo rabelaisiano, o autor acaba, sabiamente, por dar a palavra ao próprio Rabelais.
Ele, várias vezes enquanto escritor e crítico aguçado de certas vivências do cristianismo, e aqui, enquanto frei François da Ordem dos Irmãos Menores no convento de Fontenay-le-Comte, sobe ao púlpito e assim se manifesta: "A imortalidade da alma, meus irmãos? Devemos crer nela, a igreja no-lo ordena; mas a razão humana não nos convence disso... Como nos provaria ela, essa razão débil, por quais argumentos nos tornaria certos de que a alma racional é uma forma que subsiste por si mesma, uma forma capaz de existir sem corpo?"
"E se vos dizem, por outro lado, "a imortalidade é necessária para que os maus sejam punidos e os justos, recompensados", quem provará e como algum dia se provará racionalmente que existe na verdade um Supremo Justiceiro?" "Não: da imortalidade pessoal das almas, assim como da Providência divina, nenhuma prova verdadeira nos torna seguros. A razão pode mostrar que a imortalidade é possível; que é provável; que é infinitamente desejável e, sob certos aspectos, necessária. Mas cabe à fé, apenas à fé, fazer o resto."

Anacronismo
Como queríamos dizer, após a crítica cerrada (talvez demais) dos testemunhos e testemunhas que falaram de Rabelais, bem ou mal -ou seja, do Livro Segundo em diante-, a obra de Febvre torna-se, além de interessante, atraente. Como eram vistos os milagres, a alma, o ocultismo, a filosofia, as manifestações da vida do século 16 na própria época? Recai-se aqui, entretanto, em uma questão metodológica cuja discussão é sempre atual.
O próprio Mikhail Bakhtin, autor do clássico "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento" (também, como o livro de Febvre, escrito como tese acadêmica e pesquisado por anos antes de ter sua primeira publicação em russo, em 1941), já tinha chamado a atenção, em sua introdução, quanto à importância de não se estudarem os fenômenos (no caso do Rabelais de Bakhtin, da expressão da cultura cômica popular da Idade Média) "à luz das regras culturais, estéticas e literárias da época contemporânea", ou seja, de não os modernizar, para não os interpretar erroneamente.
Mas Febvre acata a transformação dessa advertência em verdadeiro postulado, segundo o qual -diz Franco Jr.- o anacronismo é "o pecado dos pecados e, entre todos os pecados, o irremissível". Entretanto, conclui o apresentador, o próprio autor não consegue ficar isento de seu quadro histórico (como ninguém, aliás): "O Rabelais que Febvre apresenta é agente histórico que age em um puro presente, totalmente contemporâneo a si mesmo, uma eucronia ideal criada pelo historiador e que se revela anacronismo".

AURORA F. BERNARDINI leciona teoria literária e literatura comparada na USP.


O PROBLEMA DA INCREDULIDADE NO SÉCULO 16

Autor: Lucien Febvre
Tradução: Maria Lucia Machado
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 66 (520 págs.)



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