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+ sociedade
A vida sob custódia
Nosso acesso
à informação
sobre quem somos
dependeu da
decisão de
um professor e
de um estudante
de informática
de que garanti-lo
era melhor do que
ganhar milhões
usando essas
informações
Manuel Castells
especial para a Folha
Já temos o mapa do que somos. É o
genoma humano, cerca de 30 mil genes que, em conjunto e segundo a estrutura do DNA, definem o que somos biologicamente. A personalidade e,
por conseguinte, o ser individual são definidos pela interação com a vida e com o
meio ambiente. Mas a base biológica da
humanidade está preliminarmente identificada. Eu sou um cientista social, não
dos outros. Não posso, portanto, explicar seriamente o que isso significa. O que
posso, sim, é indicar algumas de suas implicações que podem ser interessantes.
A primeira consequência é sobre a própria biologia e sobre a ciência em geral.
Acontece que, em vez dos 100 mil genes
que se calculava que tínhamos, temos
apenas cerca de 30 mil. Isto é, 300 genes a
mais que o rato, pouco mais que a mosca
e o verme e se prevê que, quando identificarmos o genoma dos macacos, estaremos par a par com eles. Portanto nosso
diferencial (e provavelmente o de todas
as espécies) não está nos genes, e sim na
interação entre os genes. Na complexidade das redes de intercâmbio. Percebem
aonde quero chegar?
Redes de genes
Faz algum tempo,
Fritjof Capra, físico teórico e, na minha
opinião, o mais importante pensador da
teoria da complexidade, levantou a hipótese de que a teoria genética atual era um
embuste mecanicista. Os genes funcionam quando e como se relacionam entre
si. No fundo, como nós. São as redes de
genes que, em sua interação biológica ao
longo do tempo, foram gerando a vida
por meio das propriedades emergentes
da matéria.
Tendo constatado que nosso patrimônio genético é relativamente pobre, ou
nos reduzimos a vermes ou aceitamos a
idéia de que nossa natureza biológica (e
não apenas nossa sociedade) depende de
nossa interação interna, social e com
nosso meio ambiente. Isso altera a biologia e, em grande medida, a ciência em geral: passamos (ou, se preferirem, aceleramos a transição) do elementar para o relacional. Concretamente: o modo como
vivemos determina aquilo que somos.
A segunda grande lição está na maneira como se obteve o mapa do genoma
humano. Uma lição que acarretou algumas surpresas. A iniciativa partiu da
ciência pública. Um consórcio de cooperação científica internacional, liderado e
financiando por instituições dos EUA e
do Reino Unido, com participação de
cientistas e centros de pesquisa norte-americanos, europeus e japoneses, colaboraram no projeto Genoma Humano,
iniciado em 1990. Mas, em meados da
década, alguns desses cientistas-empresários comuns nos EUA perceberam o
potencial comercial do projeto e também seu ponto fraco. O mapeamento
dos genes que configuram nosso corpo
pode permitir a identificação de suas irregularidades; portanto, de suas doenças
e, portanto, de sua cura.
Vender vida é o melhor negócio que
existe, como bem sabem as seguradoras
e planos de saúde. Por outro lado, o projeto oficial apresentava os dois problemas típicos de toda empresa pública: a
fragmentação burocrática e o corporativismo profissional. Corporativismo,
neste caso, significa o menosprezo dos
biólogos pela informática. Uma empresa
privada sabe que nada funciona sem
computadores.
Então surgiu uma alternativa privada
ao projeto do Genoma Humano: a empresa Celera Genomics, dirigida por um
cientista, o doutor Craig Venter, que se
propôs a mapear o genoma paralela e
mais rapidamente, aproveitando a capacidade de cálculo pesado dos computadores munidos de programas capazes de
processar rapidamente toda a informação obtida na pesquisa biológica. A data
de conclusão do programa público do
Genoma Humano fora marcada para
2003. Mas, no início de 2000, a Celera
anunciou que teria o mapa até o final do
mesmo ano.
Pânico no mundo científico. O que
aconteceria se uma empresa privada patenteasse o genoma de nossa espécie
-ou pelo menos parte dele? Uma senhora de Boston não esperou a resposta:
por via das dúvidas, foi até o escritório de
patentes e patenteou a si mesma. O diretor do programa público, sir Francis
Watson, Prêmio Nobel e descobridor da
hélice de DNA, ordenou que o Genoma
Humano concluísse o mapeamento imediatamente, ainda em 2000. Fácil de dizer, mas difícil de fazer. Porque se sabia
muito, mas não como compatibilizar e
relacionar todo esse saber. Eis então que
os biólogos das universidades também
descobriram a importância decisiva da
informática.
Instinto de generosidade
Em dezembro de 1999, o principal pesquisador
do programa público, o doutor Lander,
do Instituto Whitehead, de Boston, chamou o professor David Haussler, do departamento de informática da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, e lhe
pediu ajuda para integrar o enorme volume de dados resultantes da pesquisa
biológica. Haussler aceitou o convite, obteve da universidade um crédito especial
de US$ 250 mil para a compra de cem
computadores e pôs mãos à obra. Mas isso não bastava. O volume de informações era tanto e o tempo tão curto que a
tarefa de integrá-los parecia impossível.
Vejam como são as coisas: Haussler,
por sua vez, chamou James Kent, um de
seus melhores doutorandos. Aos 41
anos, Kent decidira voltar a estudar depois de ter passado uma década numa
empresa de multimídia. James Kent resolveu aceitar o desafio porque, segundo
ele, "o escritório de patentes do governo
é muito irresponsável ao conceder patentes de invenção a descobertas. É algo
que me preocupa. Por isso decidimos
publicar o conjunto de genes humanos o
quanto antes".
Um mês depois, estava feito. Aquilo
que o programa público, com centenas
de cientistas de todo o mundo, não conseguira fazer, e que a empresa privada,
com centenas de milhares de dólares, vinha tentando havia anos, James Kent fez
em um mês. Começou em 22 de maio de
2000 e terminou em 22 de junho, escrevendo o programa GigAssembler para o
Genoma Humano, com 10 mil linhas de
código. Ganhou por três dias a corrida
com a Celera. Pelo bem da humanidade.
E publicou o resultado na Internet (genome.ucsc.edu). Desde o dia 7 de julho
do ano passado, quando o programa
idealizado por Kent foi disponibilizado
na Web, o site da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, recebe algo em
torno de 20 mil visitas diárias.
Ou seja, nosso acesso à informação sobre quem somos dependeu da decisão de
um professor e de um estudante de informática de que garanti-lo era melhor
do que ganhar milhões usando essas informações. É verdade que a Celera afirma que também publicará as informações que obtiver. Mas nem todas, e não
se sabe como. Pois, em última instância,
a empresa tem de remunerar seus investidores, o que é normal, pois eles apostaram milhões de dólares no projeto à espera de lucro. Nossa espécie, portanto, se
autopreserva (ou pelo menos preserva a
informação necessária para tanto) graças mais a seu instinto de generosidade
que ao de competição. Não é um mau começo para nosso conhecimento do genoma humano.
Manuel Castells é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor de, entre outros, "A Era da Informação" (ed.
Paz e Terra).
Tradução de Sergio Molina.
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