|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ história
A mística da revolução
Para o inglês Eric Hobsbawm o milenarismo camponês é a base das principais correntes de contestação política e econômica do século 20
Graças à problemática do milenarismo, a historiografia de Hobsbawm integra toda a riqueza da subjetividade sociocultural, a profundidade das crenças, dos sentimentos e emoções na análise que faz dos fatos históricos
|
Michael Löwy
especial para a Folha
Eric Hobsbawm é um homem das
Luzes -afinal, ele não define o socialismo como o último e mais extremo descendente do racionalismo do século 18? Apesar disso, sua abordagem se distingue notavelmente da vulgata "progressista" pelo interesse, a simpatia, até mesmo o fascínio -são os termos que ele próprio utiliza- que sente
pelos movimentos camponeses ditos
"primitivos" de resistência e protesto antimoderno (anticapitalista), como demonstram suas obras "Rebeldes Primitivos" (1959), "Bandidos" (1969; lançado
no Brasil pela Forense Universitária) e
"Capitão Swing" (1969, Francisco Alves).
Essa atitude -ao mesmo tempo metodológica, ética e política- implica um
distanciamento com relação a uma certa
historiografia que, em função de algo
que ele qualifica como uma deformação
("viés") racionalista e "modernista", tende a ignorar ou menosprezar esses movimentos, enxergando-os como sobrevivências bizarras ou fenômenos marginais. Para Hobsbawm, porém, essas populações "primitivas" são ainda hoje -o
que significa nos anos 50- a grande
maioria na maior parte dos países do
mundo. Além disso -e, para o historiador, esse é o argumento decisivo- "é
sua tomada de consciência política que
tornou nosso século o mais revolucionário da história".
Em outras palavras, longe de ser marginal, esse tipo de movimento está na
origem ou raiz das grandes reviravoltas
revolucionárias do século 20, nas quais
camponeses ou massas pobres da zona
rural exerceram papel decisivo: a Revolução Mexicana de 1911-19, a Revolução
Russa de 1917, a Revolução Espanhola de
1936, a Revolução Chinesa e a Revolução
Cubana. A idéia é apenas sugerida por
Hobsbawm, mas constitui uma espécie
de pano de fundo de suas pesquisas sobre os "primitivos".
Hobsbawm observa que, para compreender essas revoltas, é preciso partir
da constatação de que a modernização, o
surgimento do capitalismo nas sociedades camponesas tradicionais, a introdução do liberalismo, significa um cataclismo social que as desarticula por completo. Quer essa chegada do mundo capitalista moderno seja um processo insidioso, que se dá pela atuação de forças econômicas que os camponeses não compreendem, quer ela irrompa de maneira
brutal, pela conquista ou troca de regime, ela é vista por eles como agressão
mortal a seu modo de vida. As revoltas
camponesas contra essa nova ordem,
sentida como insuportavelmente injusta,
em muitos casos são inspiradas pela nostalgia do mundo tradicional, dos "bons e
velhos tempos" em maior ou menor
grau míticos.
O caso de resistência rural anticapitalista que Hobsbawm estudou mais sistematicamente foi a revolta dos trabalhadores agrícolas ingleses em 1830, um
movimento de protesto de massas que
utilizou métodos "arcaicos" -incêndios
de celeiros, destruição de máquinas- e
se valia de um mítico "Capitão Swing".
No livro que dedicou (em colaboração
com o seu amigo Georges Rudé) a essa
revolução duramente reprimida pelas
autoridades -19 execuções, 481 deportações para a Austrália e 644 condenações a penas pesadas de prisão, para uma
revolta que destruiu propriedades, mas
não causou nenhuma morte entre seus
inimigos-, Hobsbawm caracterizou o
movimento como uma resistência improvisada, espontânea, "arcaica", contra
a lógica do mercado e o pleno triunfo do
capitalismo rural.
Entretanto, negando-se a seguir certa
tradição dita "modernista" e que é tanto
liberal quanto de esquerda, o historiador
não caracteriza esse movimento como
"reacionário". Longe de condená-lo como "passadista", atribui seu fracasso ao
fato de não ter conseguido atingir os
meios urbanos.
Pancho Villa
Sob que condições e
formas a revolta "primitiva" pode transformar-se em movimento revolucionário? No caso do banditismo social, a passagem não se dá facilmente. Apesar disso, pode acontecer de os dois mundos se
encontrarem, como foi o caso da Revolução Mexicana de 1911-19: "Pancho Villa,
o formidável general dos exércitos revolucionários, foi levado à Revolução Mexicana pelos homens de Madero. De todos os bandidos profissionais do mundo
ocidental, talvez tenha sido o de mais bela carreira revolucionária".
Dentre todas as formas de revolta "primitiva", os movimentos milenaristas parecem ser, na visão do historiador, os
mais aptos a se tornarem revolucionários. Entre o milenarismo e a revolução
existiria uma sorte de "afinidade eletiva"
-a terminologia é minha, e não de
Hobsbawm-, uma analogia estrutural:
"A essência do milenarismo, a esperança
de uma transformação completa e radical do mundo que se traduzirá na chegada do novo milênio, não se limita ao primitivismo. Está presente, quase que por
definição, em todo movimento revolucionário".
Graças à problemática do milenarismo, a historiografia de Eric Hobsbawm
integra toda a riqueza da subjetividade
sociocultural, a profundidade das crenças, dos sentimentos e emoções na análise que faz dos acontecimentos históricos,
que, nessa perspectiva, deixam de ser
percebidos simplesmente como produtos da ação "objetiva" das forças econômicas ou políticas. Essa abertura para a
dimensão subjetiva se traduz também
pelo fato de que a análise em termos de
classes sociais não elimina o lugar irredutível dos indivíduos, tanto célebres
quanto desconhecidos, aos quais o historiador frequentemente dá a palavra.
Ao mesmo tempo em que traça uma
distinção cuidadosa entre milenarismos
primitivos e revolucionarismos modernos, Hobsbawm insiste em seu parentesco (ou afinidade) eletivo: "Mesmo os
menos milenaristas dos revolucionários
modernos têm um traço de "impossibilismo" que faz deles os "primos" dos taboritas e dos anabatistas, parentesco que,
aliás, nunca negaram".
Trata-se de uma das hipóteses de pesquisa mais interessantes traçadas por
Hobsbawm em seus trabalhos sobre essa
época. Ele ilustra suas teses com dois estudos de caso profundamente interessantes: o anarquismo rural na Andaluzia
e as ligas camponesas da Sicília, ambos
originários no final do século 19, com
prolongamentos no século 20.
O anarquismo agrário espanhol é talvez "o exemplo mais impressionante de
movimento moderno de massas milenarista ou quase milenarista". Por seu revolucionarismo simples, sua fé absoluta na
"grande transformação", no advento de
um mundo de justiça e liberdade, esse
movimento comunista libertário -que
correspondia de maneira estranha às aspirações espontâneas dos camponeses
andaluzes e à sua rejeição da nova ordem
capitalista- era "utópico, milenarista,
apocalíptico".
A atitude do historiador diante dos
anarquistas andaluzes é marcada pela
ambivalência. Por um lado, ele não oculta a admiração que lhe despertam sua
energia social, sua crença na educação,
ciência e progresso, sua sede de conhecimento -mesmo enquanto cavalgava
seu burrico, o militante continuava a ler,
deixando a rédea solta!- e, sobretudo,
seu espírito de solidariedade internacionalista, que fazia com que "o sapateiro de
um pequeno povoado da Andaluzia tivesse a consciência de ter companheiros
lutando pela mesma causa em Madri e
Nova York, Barcelona, Livorno ou Buenos Aires". Mesmo seus levantes "messiânicos" a cada dez anos, sempre fadados ao fracasso, porque isolados, eram,
"nas circunstâncias em que ocorriam, a
menos desesperada das técnicas revolucionárias disponíveis".
Apesar disso, Hobsbawm pensa -e,
aqui, fica claro que quem fala é o comunista inglês- que, devido à ausência de
organização, estratégia e paciência, "suas
energias revolucionárias foram quase inteiramente desperdiçadas". Essa avaliação sumária é parcialmente desmentida
pela constatação, alguns parágrafos acima, de que, quando existiam as condições para isso, como aconteceu em julho
de 1936, os povoados anarquistas se
mostraram perfeitamente capazes de
realizar uma "revolução clássica", "tomando o poder das mãos das autoridades locais, dos policiais e dos proprietários de terras".
Em 1969 Hobsbawm faz outro balanço
do movimento anarquista, que, ao mesmo tempo em que conserva uma distância crítica, não deixa de constituir homenagem calorosa que tem poucos equivalentes entre os escritos saídos da pena de
um historiador comunista.
O anarquismo é "o sonho intransigente e louco que todos compartilhamos,
mas que poucos homens, excetuando os
espanhóis, alguma vez tentaram realizar,
mesmo que isso significasse correr o risco da derrota total e de reduzir o movimento dos trabalhadores à impotência.
Seu mundo era o mundo em que os homens são regidos puramente pelas exigências da consciência moral; onde não
existe pobreza nem governo nem prisões
nem polícia; onde não há outra obrigação e disciplina senão aquelas ditadas pela luz interior; onde não existem outros
laços sociais senão os da fraternidade e
do amor; onde não há mentiras nem
propriedade nem burocracia". Devemos
enxergar nessa homenagem surpreendente a influência do espírito de Maio de
1968 sobre o historiador?
O outro movimento milenarista revolucionário estudado por Hobsbawm é o
das ligas camponesas da Sicília, que, a
seus olhos, apresenta um caráter exemplar, na medida em que se trata de um
movimento agrário "primitivo" que se
torna "moderno" pela adesão ao socialismo e ao comunismo. Como na Andaluzia, que guarda semelhanças notáveis
com a Sicília, os camponeses se revoltaram no final do século 19 contra a introdução de relações capitalistas na zona
rural, relações essas cujas consequências
foram agravadas pela depressão agrária
mundial dos anos 1880. O movimento
tomou forma com a fundação e expansão das ligas camponesas, geralmente
sob direção socialista, seguida de levantes e greves numa escala que assustou o
governo italiano, levando-o a recorrer à
força militar para sufocar o perigo.
Esse movimento era "primitivo" e milenarista na medida em que o socialismo
pregado pelas ligas era, aos olhos dos
camponeses sicilianos, uma nova religião, a verdadeira religião do Cristo
-traída pelos sacerdotes aliados dos ricos- que anunciava a chegada de um
mundo novo, sem pobreza, fome e frio,
segundo a vontade de Deus. Em suas
manifestações, carregavam crucifixos e
imagens santas, e o movimento, que
contava com importante participação de
mulheres, se alastrou em 1891-94 como
uma epidemia: as massas camponesas
eram conduzidas pela crença messiânica
na iminência do surgimento de um novo
reinado de justiça. Ao mesmo tempo, como mostram vários depoimentos, "não
havia dúvida de que o que os camponeses queriam era uma revolução, uma sociedade nova, igualitária e comunista".
Apesar da derrota sofrida em 1894, graças às práticas organizacionais modernas dos socialistas, movimentos camponeses permanentes puderam ser constituídos em certas regiões da Sicília, tendo
sido herdados pelo movimento comunista após a Grande Guerra. A história da
vila de Piana dei Greci ilustra essa continuidade. Epicentro das revoltas do final
do século 19, nos anos 50 do século 20
ainda era um reduto comunista: "Seu entusiasmo milenarista original se metamorfoseou em algo mais durável: uma fidelidade permanente e organizada a um
movimento social-revolucionário moderno". Para Hobsbawm, a experiência
de Piana mostra que "o milenarismo não
está condenado a ser um fenômeno temporário, mas pode, sob condições favoráveis, ser o fundamento de uma forma
de movimento permanente e extraordinariamente forte".
Em outras palavras, o milenarismo não
deve ser visto unicamente como "uma
sobrevivência comovente de um passado arcaico", mas como uma força cultural que permanece ativa, sob outra forma, nos movimentos sociais e políticos
modernos. A conclusão que o historiador propõe ao final de seu capítulo dedicado às ligas camponesas sicilianas possui alcance histórico, social e político:
"Quando é integrado a um movimento
moderno, o milenarismo pode não apenas se tornar politicamente eficaz, como
fazê-lo sem perder essa fé incandescente
num mundo novo e essa generosidade
de emoção que o caracterizam". Essa observação pode ser vista como a "moral
da história" do conjunto de escritos de
Hobsbawm sobre o milenarismo e as revoltas primitivas.
Parece-me que Hobsbawm abriu aqui
um caminho de pesquisa apaixonante,
não apenas para historiadores, mas também para sociólogos ou antropólogos
políticos, estudiosos dos fenômenos
atuais. Citaria apenas dois exemplos tirados de meu próprio campo de pesquisa:
o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), de Chiapas (México), e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), do Brasil. Ambos são
movimentos camponeses de protesto (e
resistência) contra a modernização capitalista, ambos possuem componentes
milenaristas que os aproximam dos fenômenos estudados pelo historiador inglês e ambos são movimentos fundamentalmente modernos por seus programas, suas reivindicações, suas práticas e suas formas de organização.
O EZLN nasceu da fusão do guevarismo (que não deixa de ter uma dimensão
milenarista) de um punhado de militantes urbanos com a revolta "arcaica" de
comunidades indígenas maias e com o
messianismo cristão das comunidades
de base (fundadas nos anos 70 pelo bispo
de Chiapas, monsenhor Samuel Ruiz),
sob a égide suprema da legenda milenarista de Emiliano Zapata. O resultado
desse explosivo coquetel político-cultural e sociorreligioso foi uma das rebeliões
camponesas mais originais dos anos 90.
O levante zapatista de janeiro de 1994
foi dirigido contra a opressão secular dos
indígenas maias pelas autoridades e proprietários de terra, mas foi motivado diretamente pelas medidas de modernização neoliberal do governo federal: a privatização das comunidades rurais ("ejidos") consagradas pela Revolução Mexicana e o acordo de livre comércio com os
EUA (Nafta), que ameaçam acabar com
o tradicional cultivo de milho das comunidades indígenas.
O movimento zapatista se distingue
também por um componente libertário
que se manifesta tanto na autogestão das
vilas quanto em sua recusa em jogar o jogo político e até mesmo em visualizar a
possibilidade da tomada do poder.
Quanto ao MST, que tem suas raízes
socioculturais na Pastoral da Terra da
Igreja Católica, nas comunidades de base
e na Teologia da Libertação, ele também
se caracteriza por um misto espantoso de
religiosidade popular, revolta camponesa "arcaica" e organização moderna, na
luta radical pela reforma agrária e, a longo prazo, por uma "sociedade sem classes". Esse movimento, de forte componente emocional, "místico" -é o termo
que utilizam os próprios militantes para
designar o estado de espírito dos participantes- ou "milenarista" (no sentido
mais amplo do termo), reúne centenas
de milhares de camponeses, meeiros e
trabalhadores agrícolas e tornou-se hoje
o mais importante movimento social do
Brasil, a principal força de contestação
da política de modernização neoliberal
empreendida por sucessivos governos
brasileiros.
Michael Löwy é cientista político, professor da
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris)
e autor de "Evolução Política de Lukács" (ed. Cortez) e "Redenção e Utopia" (Cia. das Letras).
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: + cultura: Segredos de uma história singular Próximo Texto: + livros: Uma fábula pós-moderna Índice
|