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Psicanálise e política se cruzam no romance "Chegada e Partida", do húngaro Arthur Koestler
A solidão na história
José Maria Cançado
especial para a Folha
A trajetória, a obra e a vida de Arthur Koestler (1905-1983) ficaram marcadas sem remédio: ele
fazia parte do grupo de intelectuais do Ocidente que, no século passado, após terem sido militantes do movimento comunista internacional e terem
rompido com ele, se viram condenados à
particular solidão dos ex-comunistas.
No caso de Koestler, depois dos chamados "processos de Moscou", que ele tratou no seu romance mais famoso, "O Zero e o Infinito" (ed. Globo), publicado
em 1941, a propósito do julgamento, sob
Stálin, de um militante da velha-guarda
bolchevique, Rubachov, calcado na figura de Bukharin. A novela se tornou quase
um artefato ideológico do chamado
"mundo livre".
Em 1944 viriam os ensaios de "O Iogue
e o Comissário", uma exortação antitotalitária à "intelligentsia" ocidental, em
que o brilho de algumas fórmulas -a
bandeira da liberdade, escreveu, "é a única possível, pois no seu tecido a saliva da
irrisão se coagula com o sangue dos nossos mortos"- foi ruidosamente instrumentalizado pelo bloco ideológico anti-soviético.
O próprio Koestler sugeriu o tamanho
e a natureza da solidão dessa identidade
adquirida dos ex-comunistas. Disse, dirigindo-se aos liberais ingleses: "Vocês
desprezam nossos gritos de Cassandra e
se melindram com o fato de ter-nos como aliados, mas nós, ex-comunistas, somos os únicos que sabemos afinal do que
se trata". O historiador marxista Isaac
Deutscher, identificando nos ex-comunistas o drama de uma dupla "traição",
ao movimento comunista e ao mundo
burguês, receava que, por isso mesmo,
talvez fossem os que menos entendessem do que se tratou afinal tudo isso.
Não é fácil decidir. Se Camus, que também marcou particular distância com relação ao socialismo real, dizia mediterraneamente que "preferia errar com o Sol a
acertar com a História", o húngaro Arthur Koestler parece ter preferido errar
com algumas outras coisas a alinhar-se
com as certezas do comissário do partido. Entre elas, com Freud, em quem ele
via um "gigante da profanação". "Chegada e Partida" (escrito entre 1942 e 1943) é
também um ato de profanação. Seu personagem principal, Peter Slavek, membro do movimento comunista internacional, depois de escapar de uma prisão
nazista é atacado por uma paralisia numa das pernas, enquanto espera num
país neutro o visto para a Inglaterra.
Nessa espécie de não-lugar em que se
encontra antes de voltar ao combate político clandestino -e depois de uma
mais desenraizadora ainda paixão amorosa-, acaba por se ver lançado, meio
sem querer, numa enfiada de sessões de
análise com uma compatriota igualmente desterrada, Sônia Bolgar, uma libertária terapeuta das almas deste mundo,
também da Europa do Leste, uma bela
de uma herdeira de Sándor Ferenczi e
Wilhelm Reich.
A profanação regressiva a que se submete Slavek durante a análise desvela para ele o que sempre esteve lá, no também
não-lugar do inconsciente: o desejo infantil de eliminar o irmão, conformando
nele a figura encoberta de uma culpa que
parece ser o motor de toda a sua vida.
Principalmente da ardente adesão à paixão e ao risco da atividade
clandestina revolucionária. Não há porém nenhuma forma consumadora
de reducionismo psicanalítico a rebaixar a trajetória e a paixão da liberdade
de Peter Slavek.
Um Sísifo alegre
O que ele vem a
perceber (e nós também, apesar da má
qualidade quase inacreditável da tradução), diante da sacudida e simpaticamente plena Sonia Bolgar, é que lá, onde
isso era -a figura agora revisitada do
desejo de fazer desaparecer o irmão-,
ele deve advir, como na fórmula de
Freud, para o que der e vier.
Tanto é assim que o que resulta não é
uma forma de intimismo à sombra do
inconsciente, mas uma
volta "à la" Sísifo (um Sísifo alegre, como o do próprio Camus) para o combate contra o nazismo.
Arthur Koestler caminhou a partir de 1950 para
um tipo de ensaísmo como obra aberta da ciência e do pensamento humano.
Talvez não dissesse mais, como insistiu
em fazer de dentro da sua persona trágica de ex-comunista, que sabia do que se
tratava tudo isso afinal.
Nos ensaios reunidos em "O Homem e
o Universo", publicado em 1959, Arthur
Koestler parece ter encontrado uma
prismatização incessante da realidade e
do entrelaçamento infinito da lei objetiva
e subjetiva que nos constitui. Não foi pela
política que ele encontrou isso. Mas não
deixa de ser hoje um bom programa de
viver e de política.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos
Drummond de Andrade.
Chegada e Partida
272 págs., R$ 32,00
de Arthur Koestler. Trad. de Juliana Borges. Ed. Germinal (r.
Freire Farto, 56, CEP 04343-120,
SP, tel. 0/xx/11/ 275-1764).
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