São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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Ponto de fuga

O texto é o corpo

"O Sol Se Põe em São Paulo", de Bernardo Carvalho, é o romance da memória, no que ela tem de mais incerto, de menos tangível

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O último livro de Bernardo Carvalho, "O Sol Se Põe em São Paulo" [Companhia das Letras], se passa no Brasil e no Japão. Bernardo Carvalho vive se deslocando para os confins do planeta. Vai aos lugares mais distantes e exóticos. Os narradores de seus livros brotam dessas viagens: são antituristas.
Não se extasiam diante das belas paisagens ou dos monumentos ilustres. Descrevem lugares banais: um cibercafé, uma estação de trem. São mal-humorados. Sentem as diferenças culturais com incômodo e desconforto.
Bernardo Carvalho conta histórias. As frases não têm ênfases nem afetações. Estão lá para fazer a narrativa avançar, trazendo informações ao leitor que, a cada linha, quer saber mais, seguir na aventura, decifrar os enigmas.
Essa neutralidade desejada, porém, encerra uma experiência vertiginosa. Frases e viagens formam como que uma rede em superfície, sugerindo a inaccessível profundidade.
Talvez, mais do que qualquer outro de seus livros, "O Sol Se Põe em São Paulo" seja o romance das máscaras, das falsas identidades, ciranda atordoante de personagens que mudam de nome.
É também o romance da memória, no que ela tem de mais incerto, de menos tangível, já que as narrativas vazam umas dentro das outras, não tanto para se desmentirem, contradizendo-se, mas para que o sentido se esvaeça.

O corpo é o texto
No fim, decifra-se o mistério; mesmo se à custa de situações muito intrincadas, o círculo se fecha. A história foi contada, os segredos revelados. Missão cumprida.
Ocorre porém que chegar ao término é fazer com que a existência se transforme em narração. Existência fictícia, já que se trata de obra imaginária.
Há, porém, um sentido forte no fato de que as obras de Bernardo Carvalho nasçam de uma experiência vivida, fundindo-se com seres reais. Os grandes romances históricos são assim: imaginados a partir de fatos e de personagens que existiram, são tão convincentes, tangíveis e presentes que se tornam, nesse sentido, mais verdadeiros do que a disciplina rigorosa dos estudos históricos.
Mais verdadeiros que a verdade: justamente por isso desmentem a verdade da verdade.
É assim com "O Sol Se Põe em São Paulo". Seu percurso induz o próprio leitor a se sentir como ficção. A perceber que, por trás de um enigma, há outro enigma, e ainda outro. A descobrir que ele próprio, leitor, é feito de memória e de narração.
As situações da trama levam ao extremo as trocas de identidades e de papéis. Enredam-se numa barafunda. Isso serve para melhor transformar o mundo, este mundo real e tangível, numa ficção sem sentido ou, antes, numa ficção cujo sentido é ser apenas ficção.

O corpo é o corpo
Chegando ao fim da história, num avião de retorno, o narrador descreve as pessoas à sua volta, de modo bem concreto, com observações sintéticas e certeiras.
Pela primeira vez é tomado por uma emoção sentimental: "De repente, como se tivesse esquecido tudo, tive vontade de chorar por todos no mesmo avião, indo para algum lugar, acreditando em alguma coisa, todos com um passado, com alguma coisa perdida e talvez pouca por encontrar".

O texto é o texto
A discrição estilística de "O Sol Se Põe em São Paulo" faz com que cada frase seja precisa.
Ela mal aflora o que é obscuro; ainda assim nos conduz à intensidade da escuridão. O livro começa deste jeito: "Não vejo nenhuma metáfora no que eu digo. É como se tudo estivesse na sombra".

jorgecoli@uol.com.br


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