São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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+Esporte

Ajuste de contas

Em via de fazer o gol mil de sua carreira, Romário ri por último e leva a melhor sobre a mediocridade

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Nenhum torcedor do Flamengo estava de fato muito preocupado com a vitória ou a derrota na partida de domingo passado contra o Vasco.
O jogo, em si, não tinha tanta importância. Já havíamos batido o bom freguês na semifinal da Taça Guanabara e assegurado um lugar na final do campeonato.
É claro que todos querem o triunfo, mas entre perder por 3 a 0, com um gol de Romário, como aconteceu, ou vencer por 3 a 2, com dois dele -que nessa hipótese atingiria o milésimo-, eu não teria muita dúvida: melhor ter perdido.
Por mais que os jogadores e o técnico do Flamengo tentassem fingir que seria uma partida "normal", o que estava em jogo era algo evidentemente excepcional: Romário, com a camisa do Vasco, iria ou não fazer o gol mil no grande rival?
O cenário que a dada altura se armou no Maracanã foi o mais dramático possível: o Flamengo, com um jogador a menos, perdia por 3 a 0, e Romário, com o 999ø gol já arquivado em sua contabilidade, dispunha de longuíssimos 12 minutos, sem contar os acréscimos, para impor uma histórica humilhação ao clube que o trouxe de volta ao futebol brasileiro e à sua enorme e inimitável torcida.
Aos 43 minutos do segundo tempo, a catástrofe, por um átimo, pareceu inevitável. O demônio recebeu a bola na área, ajeitou-se com um passo de dança, colocou-a à feição e disparou com a canhota.
Foi quando os deuses do futebol decidiram fazer justiça à massa flamenguista pelas mãos, ou melhor, pela ponta do pé, do arqueiro Bruno.
Aquele sujeito que aos 18 anos de idade descarregava caminhão de manhã, estudava à noite e treinava à tarde no Cruzeiro, em Belo Horizonte, encontrava seu destino maior: tornar-se o salvador da nação rubro-negra.
O feito do craque talvez ocorra hoje, diante do Botafogo -e todas as piadas sobre a possibilidade de o milésimo gol acontecer num 1ø de Abril já foram feitas.
Romário ainda desperta rancores. É torturante para alguns tolerar o gênio popular imodesto. O camarada que veio da favela, venceu e não abaixou a cabeça. O talento excepcional que conhece seu valor e não tem pudor em proclamá-lo -impávido e autoconfiante como Muhammad Ali.
Esse sentimento do mal que ainda se volta contra Romário quase o impediu de levar o Brasil à classificação para a Copa de 1994, que levantamos graças, sobretudo, a sua impressionante capacidade de jogar futebol.
A mediocridade autoritária e burocrática da dupla Parreira-Zagallo, contra todas as evidências e contra todos os brasileiros que viam em Romário o talento extraordinário que ele possui, fez o possível para deixá-lo fora da Copa.
Mas a pressão das arquibancadas felizmente triunfou, justo no momento em que a estupidez no poder viu-se ameaçada e, para salvar sua própria pele, cedeu.
Naquela partida contra o Uruguai, em que começou aplicando um magnífico chapéu sobre um pobre-diabo, Romário mostrou que não deixaria Zagallo e Parreira perderem a Copa.
A conquista de 94 conferiu a ele um reconhecimento que, na realidade, já alcançara entre a multidão dos verdadeiros amantes do futebol.
Sua capacidade de alternar ritmos, de sair do passo de sandália arrastada para o arranque do puro-sangue, o jeito brasileiríssimo de tratar a bola, a capacidade de tornar-se invisível e surgir diante do gol, tudo isso já havia encantado quem tinha olhos para ver.
Romário é um dos maiores e sua despedida dos campos, um momento histórico.


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