São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O divisor de águas turvas

O historiador Ronaldo Vainfas alerta para a "visão simplista" da questão racial e critica a vitimização da África pelo Ocidente

DA REDAÇÃO

Para Ronaldo Vainfas, professor titular de história na Universidade Federal Fluminense, as declarações da ministra Matilde Ribeiro incitam ao ódio racial e demonstram uma visão "simplista e insidiosa". Para o autor de "Trópico dos Pecados" (Nova Fronteira), embora seja ministra, a titular da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial fala em nome de "setores radicais do movimento negro, revanchistas e que ideologizam ao extremo".
Para o historiador, a ministra não consegue deixar de ser uma "militante radical do movimento negro". Ele também criticou a vitimização da África pelo Ocidente.

 


FOLHA - O Reino Unido lembrou no último dia 25 a lei de 1807 que proibiu o comércio escravista. O prefeito de Londres, Ken Livingstone, disse que a sociedade inglesa deveria "se desculpar publicamente pelo papel que Londres teve nesse crime monstruoso. Em abril de 2005, em viagem à África, Lula havia pedido perdão por negros que foram escravos no Brasil. Como o sr. vê essas manifestações de mea-culpa?
RONALDO VAINFAS
- Eu não tenho muita simpatia, acho que transferem a responsabilidade no tempo e para quem não tem responsabilidade histórica no processo.
Essa história de vitimizar a África, ocultando que a África se envolveu no tráfico, é descabida, mistificadora e historicamente frágil. Havia uma cumplicidade enorme dos reis africanos.
Os europeus não conquistaram a África e capturaram eles mesmos os africanos para levar para as Américas.

FOLHA - O sr. acha que o discurso da ministra embute de alguma forma um racismo às avessas?
VAINFAS
- Acho que sim. É uma declaração muito infeliz que incita o ódio racial.
É uma declaração que propõe o critério racial como um divisor de águas, como forma de estratificação social, de uma leitura do social no Brasil. Isso atropela todo o nosso processo histórico de miscigenação.

FOLHA - Reportagem publicada na Folha em 19/3 mostrou que 9 de 15 instituições avaliadas não estavam conseguindo preencher as vagas reservadas pelo sistema de cotas. O sr. acha que a política de cotas está em xeque?
VAINFAS
- Não tenho domínio dos dados, mas parece que sim. Alguma coisa na administração da seleção não está funcionando. E isso pode ser derivado de uma má vontade.

FOLHA - O problema seria a administração do sistema ou a essência das políticas afirmativas?
VAINFAS
- Tenho dúvidas sobre a adoção de políticas afirmativas quando entra em causa a questão racial no Brasil. Acho que as ações afirmativas ligadas à questão da pobreza são importantes.
No Brasil a discriminação é antes de tudo social. Investimento maciço em educação de base seria um exemplo. Se a maior parte da população excluída das universidades é afro-descendente, não é porque é de origem afro-descendente.
É porque as condições sociais não favoreceram uma preparação mais adequada para entrar na universidade pública.
Isso difere dos EUA, onde a população negra tinha plenas condições de participar e era impedida pela condição de ser negra. Os negros não podiam ocupar certos postos nem entrar na universidade exatamente porque eram negros.
A história da construção do racismo é muito diferente no Brasil e nos EUA. Não sei se o mesmo remédio pode valer, como panacéia.

FOLHA - Alguns antropólogos defendem que a política de cotas adotada pelo Brasil está sendo importada dos países anglo-saxões, que têm uma história diferente...
VAINFAS
- Na prática social o Brasil tem uma história diferente. No período colonial existiam estatutos de limpeza de sangue que podiam inabilitar uma pessoa de origem judaica, moura ou negra de ascender a certas posições. Isso também existia no Brasil. A idéia principal era barrar os cristãos-novos, não era uma política contra a população negra.

FOLHA - Quando a ministra dá essas declarações, ela representa algum grupo?
VAINFAS
- Acho que ela representa menos o Estado, embora seja ministra -o que é uma coisa incrível- e mais os setores radicais do movimento negro.
Esses movimentos são muito revanchistas e ideologizam ao extremo essa questão, lêem a sociedade a partir dessa chave, brancos x negros. Ela deu outras declarações infelizes, como aquela de que ficava mais satisfeita de ver um branco ressentido com um negro na universidade do que um branco feliz e um negro fora da universidade.
(MS)


Texto Anterior: Expressão infeliz
Próximo Texto: Sistema de cotas veio da ação afirmativa de John Rawls
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.