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No prefácio a "Às Portas da Revolução", que reúne textos de Lênin de
1917, o filósofo Slavoj Zizek vê uma "grandeza intrínseca" no stalinismo
O oráculo falso do guru
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Às Portas da Revolução"
-com uma breve introdução e um longo posfácio,
ambos do editor, Slavoj Zizek- é uma antologia dos escritos
de Lênin de fevereiro a outubro de
1917. O espaço consagrado à política
leninista nos textos de Zizek (que
ocupam um volume maior do que
os do autor) é relativamente reduzido, comparado à enxurrada de considerações sobre psicanálise, cinema, literatura etc.
Procuramos em vão uma discussão senão detalhada, pelo menos suficiente da política leninista, de suas
origens (ela evidentemente não começa em 1914), das críticas que lhe
endereçam Rosa Luxemburgo e o
jovem Trótski e também do que vem
depois de outubro.
O espaço é, entretanto, suficiente
para legitimar o leninismo, embora,
no final principalmente, Zizek tente,
de algum modo, limitar o alcance da
operação: "(...) repetir Lênin não significa retornar a Lênin -repetir Lênin é aceitar que "Lênin esteja morto", que a solução proposta por ele
fracassou e até que fracassou monstruosamente, mas que havia uma
chama utópica ali que vale a pena
guardar".
O que sobra, assim, é "a chama
utópica" ou, como ele dirá na página
final, em bom lacanês, "o significante Lênin"... Mas o que está contido
no significante "chama utópica" e
no significante "significante Lênin"?
O que é o leninismo para Zizek?
Fim da ilusão
O leninismo, para Zizek, significa
sobretudo condenar a "ilusão" da
via parlamentar, e não só para o caso
russo. "Arriscar o ato revolucionário". Mas o elogio do ato revolucionário vem junto com a legitimação
da "renúncia à utopia" numa primeira etapa, que corresponde à do
projeto "modestamente realista" da
Nova Política Econômica, do início
dos anos 20. Só que, se, na época da
NPE, houve um controle menos estrito da vida econômica, a repressão
política não desapareceu.
Zizek sabe disso, como se pode ver
pelo comentário de um texto de Lênin que ele faz em seu livro "On Belief" ("Sobre a Crença"), texto (de
1922) em que Lênin afirma que não
se deve discutir com os mencheviques e outros opositores, mas pô-los
diante de um pelotão de fuzilamento. Se Zizek começa objetando um
pouco, ele conclui pelo que, no plano do efeito de leitura, representa na
realidade uma justificação pelo menos parcial do apelo às execuções
("[há um] momento de verdade na
resposta acerba de Lênin" etc.).
Assim, o "significante Lênin" e a
"chama utópica" são suficientemente amplos e abertos para acolher e
justificar o trabalho radical dos funcionários da policia política e contra
gente que, combatendo o bolchevismo, encarnava então -os melhores
pelo menos- a causa do progresso
social.
Há no texto de Zizek uma atmosfera "oracular" de estilo heideggeriano
(um culto "bruto" do que "é") que se
revela, principalmente, quando ele
trata do stalinismo. Se Zizek não se
recusa a criticar o poder stalinista,
ele defende a tese da "grandeza intrínseca do stalinismo", contra a alternativa de que fora uma reação
"termidoriana", como pretendia
Trótski. Mas, se o stalinismo não foi,
de forma alguma, termidor (o conceito não se aplica ao caso), nem por
isso ele tem ou ganha "grandeza intrínseca".
Se a União Soviética se industrializou, foi ao preço de genocídio de
camponeses, da liquidação da intelligentsia e da asfixia do movimento
socialista russo, o que -tudo junto- aponta antes para uma grande
regressão histórica, categoria que,
pelo menos nesse contexto, Zizek
desconhece.
Se o quase-elogio do stalinismo se
faz no interior de um discurso que
lembra o da sacralização do ser, a
grande referência de Zizek não é, entretanto, Heidegger, mas Lacan. Lacan estaria para Freud como Lênin
para Marx. É possível, mas para o
pior. De Freud a Lacan, como de
Marx a Lênin, há uma inflexão anti-humanista que, em um dos casos
oblitera em boa medida um projeto
de autonomia do sujeito e, no outro,
amplia o espaço em que se legitima a
violência e o autocratismo.
"Falsa consciência"
Para quem relê os textos de Lênin
uns 30 ou 40 anos depois da última
leitura, impressiona o fato de que ele
prepara uma insurreição utilizando
um discurso que não corresponde
àquilo que ele iria fazer, um discurso
ideológico, de "falsa consciência", a
meio caminho do engano e da falsificação. Lênin propõe ou evoca certos
objetivos, que a vitória do bolchevismo iria na realidade, liquidar: a Assembléia Constituinte e principalmente a entrega de todo poder aos
sovietes. Nenhuma pirueta lacaniano-heideggeriana, nenhuma casuística pós-moderna "de esquerda" poderá negar o fato de que a chamada
Revolução de Outubro significou a
morte dos sovietes independentes.
A propósito, um detalhe curioso.
Para Zizek, "a maior prova" de que
Outubro não foi um golpe de Estado
teriam sido certos espetáculos como
a encenação- que teria mobilizado
alguns dos ex-participantes da insurreição- da tomada do Palácio
de Inverno, feita no terceiro aniversário do movimento.
Ora, três meses depois dessa montagem, 15 mil pessoas, mais ou menos um terço da população da cidade insular de Kronstadt, se reuniram
e depois tomaram armas pedindo liberdade para os sovietes, libertação
dos presos e outras medidas revolucionário-democráticas.
Aqui os antigos participantes estavam realmente de volta -pesquisas
recentes mostram que os marinheiros de Kronstadt eram os mesmos
que haviam se mobilizado no levante de outubro-, e não para fazer
teatro. Zizek assume em forma quase caricatural esse "recalque" ideológico dos ideais de parte dos que
apoiaram outubro, quando escreve,
sem rir, que a revolução "socialista"
apareceu como necessária para
"proteger os verdadeiros ganhos da
Revolução de Fevereiro (liberdade
de organização e da imprensa etc.)".
Curiosa proteção à liberdade de imprensa, que, efetivamente, não durou mais do que alguns dias.
Como contraponto à antologia leninista de Zizek, assinalo a publicação em português, que data já de alguns anos, de um livro notável, "A
Tragédia de um Povo - História da
Revolução Russa, 1891-1924" (ed.
Record), de Orlando Figes. Esse livro
nos remete ao mesmo objeto, num
contexto muito mais amplo e, principalmente, com uma outra visada.
Além de ser um grande trabalho
de pesquisa, ele contém várias coisas
importantes: uma crítica do bolchevismo, que não deixa de mostrar as
debilidades dos socialistas democráticos, e a necessidade de um verdadeiro poder dos sovietes (mas também da Assembléia Constituinte);
uma apresentação favorável, mas
não idealizada, da Revolução de Fevereiro; uma análise fina da relação
entre a violência de base e a violência
de cima, depois de outubro; uma crítica das leituras de direita do processo revolucionário russo.
No que me concerne, depois da leitura desses dois livros -embora, no
caso de Zizek, me pergunte se outros
dos seus textos, sobretudo os mais
recentes, não vão no sentido de uma
maior abertura-, não resisto à tentação de dizer, com vista sobretudo à
juventude universitária e parafraseando um clássico, que melhor seria dedicar apenas algumas horas
por ano à leitura dos ideólogos (refiro-me mais de perto aos "editores",
pois os "autores", podem ser, como
no caso presente, parte constitutiva
da história do objeto) e, pelo contrário, dedicar alguns meses à leitura
dos grandes historiadores, no caso,
os historiadores das revoluções.
Não que estes se abstenham de tomar posição. Mas, além de competentes tecnicamente, eles são também, salvo exceções, extremamente
lúcidos no plano político, ao contrário do que sugerem as aparências (e
os ideólogos).
Um pouco menos de excitação
provinciana com os ideólogos -há
cidades brasileiras em que se constituem verdadeiras seitas em torno do
último guru importado- e um
pouco mais de leitura, crítica, dos
grandes historiadores permitiria
sem dúvida melhorar -bem- a
qualidade do nosso debate político.
Ruy Fausto é filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo.
Às Portas da Revolução - Escritos de Lênin de 1917
346 págs., R$ 45,00
de Slavoj Zizek. Trad. Luiz Bernardo Pericás, Fabrizio Rigout e Daniela Jinkings. Ed. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/
xx/11/ 3875-7250).
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