São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

No prefácio a "Às Portas da Revolução", que reúne textos de Lênin de 1917, o filósofo Slavoj Zizek vê uma "grandeza intrínseca" no stalinismo

O oráculo falso do guru

RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Às Portas da Revolução" -com uma breve introdução e um longo posfácio, ambos do editor, Slavoj Zizek- é uma antologia dos escritos de Lênin de fevereiro a outubro de 1917. O espaço consagrado à política leninista nos textos de Zizek (que ocupam um volume maior do que os do autor) é relativamente reduzido, comparado à enxurrada de considerações sobre psicanálise, cinema, literatura etc.
Procuramos em vão uma discussão senão detalhada, pelo menos suficiente da política leninista, de suas origens (ela evidentemente não começa em 1914), das críticas que lhe endereçam Rosa Luxemburgo e o jovem Trótski e também do que vem depois de outubro.
O espaço é, entretanto, suficiente para legitimar o leninismo, embora, no final principalmente, Zizek tente, de algum modo, limitar o alcance da operação: "(...) repetir Lênin não significa retornar a Lênin -repetir Lênin é aceitar que "Lênin esteja morto", que a solução proposta por ele fracassou e até que fracassou monstruosamente, mas que havia uma chama utópica ali que vale a pena guardar".
O que sobra, assim, é "a chama utópica" ou, como ele dirá na página final, em bom lacanês, "o significante Lênin"... Mas o que está contido no significante "chama utópica" e no significante "significante Lênin"? O que é o leninismo para Zizek?

Fim da ilusão
O leninismo, para Zizek, significa sobretudo condenar a "ilusão" da via parlamentar, e não só para o caso russo. "Arriscar o ato revolucionário". Mas o elogio do ato revolucionário vem junto com a legitimação da "renúncia à utopia" numa primeira etapa, que corresponde à do projeto "modestamente realista" da Nova Política Econômica, do início dos anos 20. Só que, se, na época da NPE, houve um controle menos estrito da vida econômica, a repressão política não desapareceu.
Zizek sabe disso, como se pode ver pelo comentário de um texto de Lênin que ele faz em seu livro "On Belief" ("Sobre a Crença"), texto (de 1922) em que Lênin afirma que não se deve discutir com os mencheviques e outros opositores, mas pô-los diante de um pelotão de fuzilamento. Se Zizek começa objetando um pouco, ele conclui pelo que, no plano do efeito de leitura, representa na realidade uma justificação pelo menos parcial do apelo às execuções ("[há um] momento de verdade na resposta acerba de Lênin" etc.).
Assim, o "significante Lênin" e a "chama utópica" são suficientemente amplos e abertos para acolher e justificar o trabalho radical dos funcionários da policia política e contra gente que, combatendo o bolchevismo, encarnava então -os melhores pelo menos- a causa do progresso social.
Há no texto de Zizek uma atmosfera "oracular" de estilo heideggeriano (um culto "bruto" do que "é") que se revela, principalmente, quando ele trata do stalinismo. Se Zizek não se recusa a criticar o poder stalinista, ele defende a tese da "grandeza intrínseca do stalinismo", contra a alternativa de que fora uma reação "termidoriana", como pretendia Trótski. Mas, se o stalinismo não foi, de forma alguma, termidor (o conceito não se aplica ao caso), nem por isso ele tem ou ganha "grandeza intrínseca".
Se a União Soviética se industrializou, foi ao preço de genocídio de camponeses, da liquidação da intelligentsia e da asfixia do movimento socialista russo, o que -tudo junto- aponta antes para uma grande regressão histórica, categoria que, pelo menos nesse contexto, Zizek desconhece.
Se o quase-elogio do stalinismo se faz no interior de um discurso que lembra o da sacralização do ser, a grande referência de Zizek não é, entretanto, Heidegger, mas Lacan. Lacan estaria para Freud como Lênin para Marx. É possível, mas para o pior. De Freud a Lacan, como de Marx a Lênin, há uma inflexão anti-humanista que, em um dos casos oblitera em boa medida um projeto de autonomia do sujeito e, no outro, amplia o espaço em que se legitima a violência e o autocratismo.

"Falsa consciência"
Para quem relê os textos de Lênin uns 30 ou 40 anos depois da última leitura, impressiona o fato de que ele prepara uma insurreição utilizando um discurso que não corresponde àquilo que ele iria fazer, um discurso ideológico, de "falsa consciência", a meio caminho do engano e da falsificação. Lênin propõe ou evoca certos objetivos, que a vitória do bolchevismo iria na realidade, liquidar: a Assembléia Constituinte e principalmente a entrega de todo poder aos sovietes. Nenhuma pirueta lacaniano-heideggeriana, nenhuma casuística pós-moderna "de esquerda" poderá negar o fato de que a chamada Revolução de Outubro significou a morte dos sovietes independentes.
A propósito, um detalhe curioso. Para Zizek, "a maior prova" de que Outubro não foi um golpe de Estado teriam sido certos espetáculos como a encenação- que teria mobilizado alguns dos ex-participantes da insurreição- da tomada do Palácio de Inverno, feita no terceiro aniversário do movimento.
Ora, três meses depois dessa montagem, 15 mil pessoas, mais ou menos um terço da população da cidade insular de Kronstadt, se reuniram e depois tomaram armas pedindo liberdade para os sovietes, libertação dos presos e outras medidas revolucionário-democráticas.
Aqui os antigos participantes estavam realmente de volta -pesquisas recentes mostram que os marinheiros de Kronstadt eram os mesmos que haviam se mobilizado no levante de outubro-, e não para fazer teatro. Zizek assume em forma quase caricatural esse "recalque" ideológico dos ideais de parte dos que apoiaram outubro, quando escreve, sem rir, que a revolução "socialista" apareceu como necessária para "proteger os verdadeiros ganhos da Revolução de Fevereiro (liberdade de organização e da imprensa etc.)". Curiosa proteção à liberdade de imprensa, que, efetivamente, não durou mais do que alguns dias.
Como contraponto à antologia leninista de Zizek, assinalo a publicação em português, que data já de alguns anos, de um livro notável, "A Tragédia de um Povo - História da Revolução Russa, 1891-1924" (ed. Record), de Orlando Figes. Esse livro nos remete ao mesmo objeto, num contexto muito mais amplo e, principalmente, com uma outra visada.
Além de ser um grande trabalho de pesquisa, ele contém várias coisas importantes: uma crítica do bolchevismo, que não deixa de mostrar as debilidades dos socialistas democráticos, e a necessidade de um verdadeiro poder dos sovietes (mas também da Assembléia Constituinte); uma apresentação favorável, mas não idealizada, da Revolução de Fevereiro; uma análise fina da relação entre a violência de base e a violência de cima, depois de outubro; uma crítica das leituras de direita do processo revolucionário russo.
No que me concerne, depois da leitura desses dois livros -embora, no caso de Zizek, me pergunte se outros dos seus textos, sobretudo os mais recentes, não vão no sentido de uma maior abertura-, não resisto à tentação de dizer, com vista sobretudo à juventude universitária e parafraseando um clássico, que melhor seria dedicar apenas algumas horas por ano à leitura dos ideólogos (refiro-me mais de perto aos "editores", pois os "autores", podem ser, como no caso presente, parte constitutiva da história do objeto) e, pelo contrário, dedicar alguns meses à leitura dos grandes historiadores, no caso, os historiadores das revoluções.
Não que estes se abstenham de tomar posição. Mas, além de competentes tecnicamente, eles são também, salvo exceções, extremamente lúcidos no plano político, ao contrário do que sugerem as aparências (e os ideólogos).
Um pouco menos de excitação provinciana com os ideólogos -há cidades brasileiras em que se constituem verdadeiras seitas em torno do último guru importado- e um pouco mais de leitura, crítica, dos grandes historiadores permitiria sem dúvida melhorar -bem- a qualidade do nosso debate político.


Ruy Fausto é filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo.

Às Portas da Revolução - Escritos de Lênin de 1917
346 págs., R$ 45,00
de Slavoj Zizek. Trad. Luiz Bernardo Pericás, Fabrizio Rigout e Daniela Jinkings. Ed. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/ xx/11/ 3875-7250).


Texto Anterior: A celebridade inconformista
Próximo Texto: Produção de Zizek é tema de coletânea
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.