São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



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Uma crescente sofisticação

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Certos autores estão escrevendo sempre um único e mesmo livro, do qual nos dão a conhecer pedaços ao longo dos anos.
Tomem-se, entre nós, os exemplos de Rubem Fonseca e de Dalton Trevisan.
Sem entrar no mérito da qualidade literária, é claro para o leitor atento que pouco mudou na obra do ficcionista carioca desde a sua estréia, em 63; e quem gosta de um dos livros dificilmente deixará de apreciar os demais -a não ser que mude a cabeça do leitor.
Com Trevisan ocorre o mesmo, de maneira ainda mais obsessiva. Estudiosos detectam evoluções na capacidade de síntese do autor, mas o leitor comum em nada estranharia a reunião dos seus livros num volume sequencial de título único.
Mário de Andrade destacava três tipos de estreantes: os "mais dolorosos", ou seja, os ruins, que "nunca deveriam ter estreado"; os "mais felizes", que começam com "obras já boas, mas ainda imperfeitas"; e os "definitivos", que já nascem acabados e completos ("Muitos deles são excelentes e sabemos que continuarão nos dando obras excelentes. Mas não nos dão esperanças -essa esperança feliz que a gente depõe nos que ninguém sabe onde poderão chegar").
Sérgio Sant'Anna, ao contrário dos autores acima, encaixou-se desde a estréia no segundo tipo, apresentando ao longo de sua carreira mudanças contínuas na forma de encarar o ofício literário. E o grande mérito da coletânea agora lançada está em expor essa evolução.
Em "Os Sobreviventes" (69), o autor deixa fluir o anseio de contar histórias de uma classe média suburbana carioca à beira de um ataque de nervos. A espontaneidade redunda às vezes em aborrecida cadência narrativa, mas há sempre uma carga emocional que dá unidade ao livro e que explode com beleza, por exemplo, no conto "Frederico", sobre a relação pai-filho.
Essa estréia valeu a Sant'Anna uma vaga no International Writing Program, na Universidade de Iowa, EUA. E o livro seguinte, "Notas de Manfredo Rangel, Repórter (a Respeito de Kramer)", de 73, é o reflexo da passagem por essa instituição.
Pois o que ali se lê, com efeito, está mais para exercício do que para criação literária. É como se Sant'Anna tivesse resolvido nos revelar o aprimoramento técnico obtido nos EUA.
As experimentações de fórmulas narrativas não surgem com naturalidade, chamam a atenção em excesso, desviam o leitor do essencial. Esse desejo (de resto, saudável) de inovar se expressa também nos romances seguintes: "Confissões de Ralfo" (75) e "Simulacros" (77).
Claro que todos esses livros não são apenas fruto de laboratório ou oficina. Tal visão seria reducionista e injusta. Mas, olhando a obra de Sant'Anna em retrospectiva, é esse aspecto o que mais salta aos olhos.
A virada mais relevante começa em 82, com "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", e se consolida no romance "Amazona" (86).
"O Concerto..." funde o que Sant'Anna experimentara antes com uma temática mais ampla. Resgata e ao mesmo tempo molda a espontaneidade, o fluxo livre, da estréia. O conto que dá título ao livro e um outro, "Na Boca do Túnel", são pequenas obras-primas.
A produção posterior -"A Senhorita Simpson" (89), "Breve História do Espírito" (91) e "O Monstro" (94)- mantém o mesmo comportamento autoral. Foi-se a necessidade de inovar a qualquer custo. Cenários e personagens se sofisticam, o texto é mais enxuto. "As Cartas Não Mentem Jamais", conto do último livro, é uma das mais belas narrativas do autor.
Talvez Sant'Anna ainda não tenha escrito aquele que será o seu grande livro, embora tenha sabido propiciar excelentes momentos de fruição artística e, por que não, bom e puro entretenimento. Reside justamente aí, na expectativa, na "esperança" de que falava Mário de Andrade, o maior e permanente trunfo desse autor.



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