UOL


São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cinema

O diretor japonês fala da influência dos filmes mudos e do teatro bunraku em seu novo trabalho, "Dolls", que será exibido em São Paulo no próximo sábado

Histórias de marionetes humanas


Takeshi Kitano


Jean-Michel Frodon
do "Le Monde"

Dolls" [Bonecas], do cineasta japonês Takeshi Kitano, apresenta três contos cruéis e sentimentais entrelaçados, inspirados na arte tradicional do bunraku. Ao lado do no e do kabuki, o bunraku, cuja origem remonta ao século 16, é a terceira grande arte cênica especificamente japonesa. Cada marionete é acionada por três homens, visíveis para o público, e o sucesso das peças depende da sincronização entre os marionetistas, o narrador e a música. No início de "Dolls" [que será exibido em SP no Centro Cultural Banco do Brasil (tel. 0/xx/11/3113-3651), no sábado, às 19h] é apresentada uma peça de Monzaemon Chikamatsu (1653-1724), chamado de "Shakespeare japonês". Como muitas de suas obras, ela evoca o "shinju", o suicídio entre amantes, que foi uma forma de protesto "romântico" contra a ordem social. Na entrevista a seguir, Kitano explica o trabalho específico com as cores e com a narrativa em "Dolls".

"Dolls" se situa, completamente, sob o signo do bunraku. O que isso representa para o sr.?
Minha avó era uma intérprete dessa arte, era ao mesmo tempo narradora e música, tocava "samisen" [instrumento de cordas semelhante ao banjo]. Ela ensaiava em casa, e eu cresci nesse ambiente -ou, para ser exato, no de uma outra forma de teatro de marionetes, o "musume gidaru", semelhante, mas diferente, dessa utilizada no filme.

Mas por que recorrer particularmente a essa arte para seu filme?
"Dolls" é um filme sobre o espetáculo. Tive a idéia de um sistema de narrativa em que as histórias, contadas pelas marionetes, ocorreriam com seres humanos, que seriam outras marionetes. Esse esquema também se aproxima muito do cinema mudo, no tempo em que havia músicos e um narrador na sala para contar ou inventar o que víamos na tela -no Japão daquela época, o "banshi" contava para o público com grande liberdade o que as imagens silenciosas lhe inspiravam.

Na origem do filme também há o desejo de contar uma história específica?
Sim, o roteiro nasceu do desejo de contar uma história entre um homem e uma mulher, um tema que pode parecer banal, mas que abordei muito pouco no cinema até hoje. Mas meu ponto de partida era ao mesmo tempo romântico e plástico: assim como esse tema, eu queria cores, as cores das quatro estações. Depois cruzei elementos dramáticos emprestados do bunraku e do kabuki para construir esse roteiro. A história do admirador que fica cego é emprestada de Tanizaki [um dos grandes nomes da literatura japonesa no século 20]. Originalmente as marionetes tinham apenas um papel simbólico. Foi trabalhando nos figurinos com o costureiro Yamamoto que decidimos ir nessa direção não-realista, como se o comportamento e a aparência das personagens saíssem do imaginário particular que teriam as marionetes, as que contam as histórias.

Como foi o relacionamento com Yamamoto?
Não foi fácil. Tive a sensação de que ele queria usar meu filme para organizar um desfile de moda. Eu reivindico o filme como ele é, afinal, mas no plano visual ele é em parte resultado de sua influência.

O resultado é muito elaborado plasticamente.
Tentei fazer um filme de que pudéssemos pegar cada imagem, e ela fosse bela. Meu sonho era captar cada fração de segundo como uma imagem isolada, que poderia existir por si só. Essa abordagem certamente foi facilitada, e talvez mesmo inspirada, pelo fato de eu também ser desenhista.

O sr. pratica diversas atividades artísticas. Tem a impressão de conjugá-las quando faz um filme?
Conscientemente, não; ao contrário, tento me abstrair de qualquer outro modo de expressão. Mas, como o cinema é por natureza uma arte composta, é provável que isso transpareça.

Nesse filme não há nenhuma cena violenta, o que é raro para o sr. Por quê?
Trata-se de meu filme mais violento, o único em que as pessoas morrem sem motivo, de maneira inesperada. Para evocar essa violência extrema e injusta, preferi deixá-la fora de campo, pois me pareceu que mostrá-la só poderia dar um resultado medíocre.

Por que o sr. intitulou o filme "Dolls"?
Com exceção de "Sonatine" (1993), nunca sou o autor dos títulos de meus próprios filmes, é sempre Mazayuki Mori [produtor de todos os filmes de Kitano] quem os encontra. A palavra me agradou porque se pronuncia bem em todas as línguas, inclusive a japonesa, e porque sua sonoridade é muito próxima da de "idol" [ídolo].

A presença das marionetes envolve a idéia de que alguém as manipula...
Sim, talvez seja Deus, uma criança, um cineasta, o destino... Mas eu prefiro deixar cada um responder por si mesmo, não impor meu ponto de vista. No que me diz respeito, é sobretudo uma criança que em certo momento se cansa e joga fora as marionetes. O filme pára.

O sr. já tem outros projetos?
Estou pensando em um filme que conta de maneira muito linear uma história muito simples, e que seria filmado na ordem. Depois eu tentaria organizá-lo na montagem de maneira totalmente diferente. Eu ensaiei essa abordagem em "Dolls", tentei desorientar a relação com o tempo. É esse, por exemplo, o motivo da longa cena na praia. Eu gosto muito de praias, que muitas vezes são desertas, e nela podemos encenar uma relação particular com o tempo e com o espaço, ninguém vem nos incomodar. Mas nesse filme não pude ir tão longe quanto gostaria nessa tentativa de desestruturação -não por causa da história, mas por causa das cores.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: ET + cetera
Próximo Texto: Capa 01.06
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.