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O debate Badiou-Zizek
Um agitado e de frases entrecortadas, outro pausado e professoral, os dois filósofos
falam em Paris sobre comunismo e anti-semitismo
Reprodução/"Le Magazine Littéraire" e João Wainer - 5.dez.03/Folha Imagem
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Alain Badiou em sua residência, em Paris, em 2004; à direita, Slavoj Zizek visita a sede da Folha, em 2003
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
O encontro dos filósofos Alain Badiou
e Slavoj Zizek, em
16 de maio passado, em Paris, foi
um show de inteligência e bom
humor. Zizek era convidado do
seminário anual que Badiou
realiza na Escola Normal Superior, templo da intelligentsia
francesa, onde Lacan e Derrida
fizeram seminários muito concorridos. A famosa e prestigiosa "Normale Sup" forma parte
da nata de intelectuais franceses até hoje.
O auditório começou a se encher uma hora antes do início
do seminário. Zizek chegou
pontualmente, acompanhado
de Badiou. Descontraído, o esloveno vestia camiseta cinza.
Mais tradicionalista, Badiou
vestia uma camisa pólo de
manga comprida. As diferenças
de estilo começavam no figurino. A origem, a língua, os campos de interesse, o temperamento, tudo parece separar esses dois filósofos, que se dizem
ligados por profunda amizade.
"Somos unidos pela amizade
e temos os mesmos inimigos",
disse Badiou ao apresentar Zizek. O filósofo e psicanalista esloveno foi imediatamente interpelado por um homem do
fundo da sala que gritou: "Zizek, você é um stalinista". O
discurso do desconhecido era
desconexo. O público de mais
de 300 pessoas, algumas de pé,
o fez calar-se pedindo silêncio.
Os dois são freqüentemente
acusados de "revolucionários"
pelos chamados "novos filósofos" da década de 70 (Bernard-Henri Lévy e André Glucksmann, sobretudo). Lévy e Glucksmann são considerados
por muitos como "novos reacionários" pois se tornaram anticomunistas militantes.
Horizonte emancipatório
O que une Zizek e Badiou, como ambos frisaram, é a convicção de que o "desastre obscuro"
do stalinismo e o fracasso do
socialismo real não invalidam o
horizonte de emancipação radical que é o comunismo, idéia
que eles defendem cada um a
sua maneira.
"É preciso reabilitar o comunismo. Mas não no sentido de
uma restauração de algo que
fracassou", explicou Zizek. "O
que nos une é a reabilitação do
comunismo."
"Hoje, as pessoas de esquerda aceitam sem problemas o
capitalismo, contentando-se
em reivindicar um pouco de
"tolerância", um pouco de "justiça". Mas será que o horizonte final da esquerda é esses capitalismo global "à visage humain"
[com rosto humano]?"
Ao apresentar Zizek, Badiou
explicou que há uma diferença
de horizonte filosófico entre os
dois. Enquanto seu horizonte
se resume à tensão entre Platão
e Sartre ou entre a idéia e a liberdade, o horizonte do esloveno é a tensão entre o idealismo
alemão (Hegel) e Lacan.
Badiou mostrou que há também diferença de horizonte político. "O meu é a seqüência da
luta anticolonial, seguida do
Maio de 68 e a experiência fundamental do maoísmo francês." Quanto a Zizek, Badiou o
vê como alguém que se origina
"de um país do antigo bloco socialista com a história de uma
heresia periférica, isto é, a heresia iugoslava de Tito em relação
ao stalinismo".
Os dois filósofos têm em comum um interesse pelo cinema, além de serem ambos grandes ouvintes das óperas de Wagner, que já foram objeto de
estudos de ambos.
Mas, apesar de estarem de
acordo sobre a "hipótese comunista", como a chama Badiou,
Zizek e ele têm estilos totalmente diferentes. Badiou fala
pausadamente, numa língua
erudita e elegante, num tom
professoral. Ao ouvi-lo, é impossível esquecer que se está
diante de um mestre.
Zizek é agitado, fala com as
mãos, pega nos cabelos. Ele se
desculpa por falar francês com
sotaque e usa frases muitas vezes entrecortadas, numa impressão de que a articulação da
língua francesa vai mais devagar que seu pensamento em
ebulição. Ele fala nervosamente, movimentando as mãos com
tiques como o que o leva a puxar a camisa de malha.
"Tribunal do povo"
Se as idéias são próximas, a
enunciação delas não pode ser
mais diferente.
Ao tomar a palavra, em vez de
fazê-lo num tom professoral,
Zizek disse que ia fazer um simulacro de "tribunal do povo",
no qual defenderia seu amigo
Badiou, acusado injustamente
de anti-semitismo e de universalismo por causa de alguns de
seus livros.
"Nós dois combatemos o anti-semitismo por princípio",
afirma Zizek.
"Nenhum acordo com o anti-semitismo é possível. Nenhuma razão pode ser invocada para tolerar o anti-semitismo.
Também não se pode minimizar Auschwitz em nome do
apoio aos palestinos. Isso é uma
obscenidade. Mas existe um
anti-semitismo sionista que
critica os judeus que não se
identificam totalmente com o
projeto do Estado de Israel, utilizando a mesma retórica dos
"antidreyfusards" no fim do século 19: a mesma acusação de
cosmopolitismo, de traição à
pátria."
Zizek não concorda com os
que tentam fazer uma aproximação dos "totalitarismos". Ele
diz que nazismo e stalinismo
são coisas totalmente diferentes. E justifica:
"Mesmo os grandes processos públicos monstruosos do
stalinismo falam de uma lógica
totalmente diferente da lógica
do nazismo. O processo político, a confissão em si já significa
que formalmente se obedece à
necessidade de demonstrar a
culpa do acusado."
"No caso de Auschwitz, os
nazistas não tinham nada a demonstrar. Era suficiente provar que você era judeu. Você
era culpado não pelo que tinha
feito, mas pelo que você era",
concluiu.
Zizek explica que, durante o
"desastre obscuro" do stalinismo, que instaurou o terror por
12 anos -de 1925 a 1937-, o lugar mais perigoso era justamente o ápice da nomenklatura, pois nesse período 80% dos
membros do comitê central do
Partido Comunista da União
Soviética foram eliminados. E
isso não se viu no nazismo.
Enigma
Os dois se aproximam na
análise que fazem do stalinismo, que Badiou denominou
"desastre obscuro".
Zizek diz que o stalinismo foi
e permanece muito enigmático
e as análises feitas até hoje não
são satisfatórias. "O horror verdadeiro do stalinismo deve ser
estabelecido pelos intelectuais
de esquerda", pensa Zizek, para
quem os chamados "novos filósofos" tinham tal ódio dos comunistas que foram incapazes
de analisar o verdadeiro horror
do stalinismo.
Zizek deixa em aberto o caminho defendido por ele e por
Badiou, a "hipótese comunista", que se opõe à globalização
neoliberal: "Não gosto da esquerda que usa fórmulas. A
propriedade privada não funciona. Mas o Estado também
não funciona. Querem nos
apresentar como velhos totalitários, mas a realidade é que
pensamos que esse problema
ainda não foi resolvido".
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