|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
A vida encarnada
Coletânea reúne as 40 novelas de Pirandello que deram origem a suas peças mais famosas,
como "Seis Personagens em Busca de um Autor"
BENEDITO NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA
A tabela que figura no
final da introdução
desta coletânea relaciona as 40 novelas de Luigi Pirandello das quais se originaram as
30 peças desse autor, inclusive
os três relatos que serviram de
base ao conhecido drama "Seis
Personagens à Procura de um
Autor" (1921).
Essa relação não nos apresenta apenas o singular paralelismo entre estruturas narrativas e estruturas dramáticas que caracteriza a produção literária do italiano Luigi Pirandello [1867-1936].
Ela indica o mais amplo fenômeno de transbordamento
da vida no teatro, equivalente a
toda uma concepção literária
da existência humana -isto é,
uma concepção teatral da vida.
Segundo essa concepção, a
existência só é humana enquanto vivida. Viver a existência significa encarná-la, personificá-la. Essa personificação a
transforma em personagem.
Criada pelo escritor como pessoa humana, a verdadeira personagem vive para além de seu
criador. Ela se torna independente dele e a ele sobrevive.
Portanto, essa personificação, no sentido que lhe atribui
Pirandello, está longe de ser
um algo estável, substancial.
Personificar significa mascarar, disfarçar, travestir: tomar a
coisa não pelo que ela é, mas
pelo que pode vir a ser sob o foco de um sentimento contrário, contanto que essa operação, a que Pirandello chama de
humor, tenha por base "viva
adesão afetiva e intelectual à
matéria humana".
Humorismo
A defesa do humorismo em
Pirandello é a apologia de tal
personificação pluralizada. A
personagem literária imita a
pessoa humana e a supera.
A pessoa é modelo sempre
superado pela personagem.
Quer isso dizer que a personagem é a pessoa em potencial, ou
seja, a pessoa que sempre está
em via de atualizar-se num processo infindo, jamais concluído, de personalização e despersonalização.
Nesse sentido, porém, a personagem pirandelliana recapitula a dramática heteronímia
do indivíduo em Fernando Pessoa. Ele é, como indivíduo, o
outro de si mesmo -isto é, ele
está sempre se fazendo outro,
está se "outrando", para empregarmos a expressão que
Fernando Pessoa empregou ao
falar de seu heterônimo Álvaro
de Campos.
Desse ponto de vista, a realidade individual é sempre uma
ilusão, se não for criada pela arte. E, quando criada artisticamente, a pessoa se faz personagem. Desse modo, ninguém sabe o que verdadeiramente é.
Ter o indivíduo consciência de
si mesmo é saber-se exercendo
um papel, como o faz um ator
de teatro, segundo o famoso
exemplo de Sartre em "O Ser e
o Nada": o garçom de café não é
aquilo que parece ser; ele é como age, na medida em que representa um papel, como o faz
um ator de teatro.
Mas o que verdadeiramente
somos nada é além dessa ilusão
cênica ou teatral.
Máscara
Em "Seis Personagens...", o
Pai retruca ao Diretor de Cena:
"Um personagem, senhor,
sempre pode perguntar a um
homem quem ele é. Porque um
personagem tem verdadeiramente uma vida sua, assinalada
por caracteres próprios, em virtude dos quais é sempre alguém. Enquanto um homem
(...), assim genericamente, pode
não ser ninguém".
Em "Advertência sobre os
Escrúpulos da Fantasia", Pirandello considera, já usando a
personagem no sentido de
máscara, que se trata da máscara para "uma representação, o
desempenho do papel que cabe
a cada qual, aquilo que desejaríamos ou deveríamos ser...".
"Angelica, Ridamonte,
Shylock, Hamlet, Julieta, Dom
Quixote, Manon Lescaut (...),
todos eles não vivem uma vida
indestrutível, uma vida independente de seus autores?"
A superioridade da personagem, como obra de arte, sobre a
pessoa natural, está em sua
imortalidade, resultante da
condição de ter sido criada.
"Quem nasce personagem,
quem tem a ventura de nascer
personagem vivo, pode até
mesmo esnobar a morte. Não
morre mais..."
BENEDITO NUNES é crítico literário e professor
titular emérito da Universidade Federal do Pará.
40 NOVELAS DE PIRANDELLO
Autor: Luigi Pirandello
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 44 (504 págs.)
Texto Anterior: Herdeiro de Sartre, francês é crítico de Sarkozy Próximo Texto: Discurso no limbo Índice
|