São Paulo, domingo, 01 de junho de 2008

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A vida encarnada

Coletânea reúne as 40 novelas de Pirandello que deram origem a suas peças mais famosas, como "Seis Personagens em Busca de um Autor"

BENEDITO NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tabela que figura no final da introdução desta coletânea relaciona as 40 novelas de Luigi Pirandello das quais se originaram as 30 peças desse autor, inclusive os três relatos que serviram de base ao conhecido drama "Seis Personagens à Procura de um Autor" (1921).
Essa relação não nos apresenta apenas o singular paralelismo entre estruturas narrativas e estruturas dramáticas que caracteriza a produção literária do italiano Luigi Pirandello [1867-1936]. Ela indica o mais amplo fenômeno de transbordamento da vida no teatro, equivalente a toda uma concepção literária da existência humana -isto é, uma concepção teatral da vida.
Segundo essa concepção, a existência só é humana enquanto vivida. Viver a existência significa encarná-la, personificá-la. Essa personificação a transforma em personagem.
Criada pelo escritor como pessoa humana, a verdadeira personagem vive para além de seu criador. Ela se torna independente dele e a ele sobrevive. Portanto, essa personificação, no sentido que lhe atribui Pirandello, está longe de ser um algo estável, substancial.
Personificar significa mascarar, disfarçar, travestir: tomar a coisa não pelo que ela é, mas pelo que pode vir a ser sob o foco de um sentimento contrário, contanto que essa operação, a que Pirandello chama de humor, tenha por base "viva adesão afetiva e intelectual à matéria humana".

Humorismo
A defesa do humorismo em Pirandello é a apologia de tal personificação pluralizada. A personagem literária imita a pessoa humana e a supera.
A pessoa é modelo sempre superado pela personagem. Quer isso dizer que a personagem é a pessoa em potencial, ou seja, a pessoa que sempre está em via de atualizar-se num processo infindo, jamais concluído, de personalização e despersonalização.
Nesse sentido, porém, a personagem pirandelliana recapitula a dramática heteronímia do indivíduo em Fernando Pessoa. Ele é, como indivíduo, o outro de si mesmo -isto é, ele está sempre se fazendo outro, está se "outrando", para empregarmos a expressão que Fernando Pessoa empregou ao falar de seu heterônimo Álvaro de Campos.
Desse ponto de vista, a realidade individual é sempre uma ilusão, se não for criada pela arte. E, quando criada artisticamente, a pessoa se faz personagem. Desse modo, ninguém sabe o que verdadeiramente é.
Ter o indivíduo consciência de si mesmo é saber-se exercendo um papel, como o faz um ator de teatro, segundo o famoso exemplo de Sartre em "O Ser e o Nada": o garçom de café não é aquilo que parece ser; ele é como age, na medida em que representa um papel, como o faz um ator de teatro. Mas o que verdadeiramente somos nada é além dessa ilusão cênica ou teatral.

Máscara
Em "Seis Personagens...", o Pai retruca ao Diretor de Cena: "Um personagem, senhor, sempre pode perguntar a um homem quem ele é. Porque um personagem tem verdadeiramente uma vida sua, assinalada por caracteres próprios, em virtude dos quais é sempre alguém. Enquanto um homem (...), assim genericamente, pode não ser ninguém".
Em "Advertência sobre os Escrúpulos da Fantasia", Pirandello considera, já usando a personagem no sentido de máscara, que se trata da máscara para "uma representação, o desempenho do papel que cabe a cada qual, aquilo que desejaríamos ou deveríamos ser...".
"Angelica, Ridamonte, Shylock, Hamlet, Julieta, Dom Quixote, Manon Lescaut (...), todos eles não vivem uma vida indestrutível, uma vida independente de seus autores?"
A superioridade da personagem, como obra de arte, sobre a pessoa natural, está em sua imortalidade, resultante da condição de ter sido criada.
"Quem nasce personagem, quem tem a ventura de nascer personagem vivo, pode até mesmo esnobar a morte. Não morre mais..."


BENEDITO NUNES é crítico literário e professor titular emérito da Universidade Federal do Pará.

40 NOVELAS DE PIRANDELLO
Autor:
Luigi Pirandello
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 44 (504 págs.)


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