São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



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Para além da erudição e do onanismo

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A literatura libertina do século 18 tende a atrair a atenção dos eruditos e dos onanistas em geral. Não é preciso pertencer a nenhum dos dois grupos para apreciar "Fanny Hill", do inglês John Cleland (1710-1789).
Há muitas diferenças entre este romance e as obras, hoje clássicas, de um Marquês de Sade ou de um Restif de la Bretonne. Sabe-se que os franceses eram mestres em pornografia. Mas as obras clássicas da pornografia francesa tendem a ser chatíssimas. Bem que eu tentei lê-las; não aguentei.
Com "Fanny Hill", entretanto, diverti-me bastante. O espírito desse livro é totalmente distinto. Literatura pornográfica, certamente é. Mas não encontramos aqueles personagens típicos do gênero libertino: o padre corrupto, o aristocrata vicioso, o demente sexual. Ao contrário, na autobiografia erótica desta camponesinha inglesa, que vai progredindo na vida graças à benevolência dos seus amantes bem-educados e das suas cafetinas benevolentes, raramente nos deparamos com a sombra da perversão.
Tudo é saudável e prazeroso. Tudo termina bem. O livro inteiro parece funcionar como um convite às mulheres, no sentido de que abandonem a virtude e o romantismo; que busquem, simplesmente, o prazer.
"Fanny Hill" é a utopia da mulher liberada, que gosta do prazer sexual tal como é na realidade (ou melhor, tal como os homens o vêem), e que sabe muito bem distinguir o amor romântico do deleite dos sentidos, sem nunca abandonar uma coisa em favor da outra.
A literatura libertina, em geral, parece espantada com a própria liberdade: no século 18, a blasfêmia e a perversão tinham de acompanhar o gozo, como prova suplementar do seu anticonvencionalismo. Em "Fanny Hill", vemos outro tipo de espanto: o da mocinha virtuosa (neste aspecto o romance não foge ao clichê) que se maravilha diante do prazer que os homens podem lhe dar e se entrega com alegria ao que aparece.
Nada mais oposto, portanto, ao clichê que identifica os ingleses à perversão, se comparados aos amantes latinos, mais "normais". No século 18, provavelmente o contrário é o que ocorria. Uma visão menos devassa, menos perversa, menos libertina do sexo estava em curso. Talvez porque, naquela altura, a Inglaterra já tivesse realizado sua revolução política e social. A liberdade filosófica dos franceses girava contra a opressão católica, a maldade dos nobres, o absolutismo do rei. Na Inglaterra, já era tempo de cada cidadão cuidar de seus próprios interesses.
Esta liberdade básica, pragmática, terra-a-terra, é um dos encantos de "Fanny Hill". Ainda que ingênua e inexperiente, a protagonista não tem nada de tola; nada de vítima, tampouco. É uma prostituta que gosta do que faz.
O livro inteiro tem a estrutura de uma comédia -o que é raro, creio, na literatura libertina. Como toda literatura libertina, entretanto, é repetitiva. A própria narradora reconhece isso; desculpa-se pela "uniformidade das aventuras e das expressões inseparáveis de um tema dessa espécie, cuja base ou fundamentos sendo, como é da natureza das coisas, eternamente os mesmos, não importa a variedade de formas e modos a que as situações sejam suscetíveis, não há como escapar a uma repetição de praticamente as mesmas imagens..." etc.
A citação acima já é capaz de dar idéia, entretanto, do tom do livro inteiro. Cleland usa um estilo elaborado, convencional, decoradíssimo nas descrições de cenas de sexo. O livro termina sendo muito engraçado, tal a quantidade de circunlóquios e eufemismos usados na narração de cada embate erótico.
Eis um exemplo: "Ele havia agora cravado, pregado essa tenra criatura, atravessando-a com seu formão, de modo que ela jazia passiva, forçosamente, e incapaz de se mexer, até que, começando uma marcha militar naquele teclado de delicadeza, à medida que acelerava a fricção para frente e para trás, ele despertou-a..." etc. etc...
Pornografia? Sem dúvida, se pensarmos que o interesse do leitor em passagens como esta é antes o da excitação física do que o do deleite literário. Mas tudo é mais comédia do que masturbação virtual. Literariamente, assim, "Fanny Hill" se afasta da libertinagem do seu século, não para fixar-se como obra-prima, mas pelo menos para ser lido, hoje em dia, como um romance agradável e otimista. A tradução de Eduardo Francisco Alves parece compartilhar desse espírito, até nas notas de rodapé; há um frescor, uma vivacidade, um colorido nesta edição de "Fanny Hill", que a recomendam além da doentia palidez da erudição e do onanismo.

A OBRA

Fanny Hill - Memórias de uma Mulher de Prazer - John Cleland. Ed. Estação Liberdade (av. Dr. Arnaldo, 1.155, CEP 01255-000, SP, tel. 011/872-9515). 312 págs. R$ 28,00.



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