São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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+ Cinema

Expressionismo de burca

A iraniana Marjane Satrapi faz longa de animação a partir de sua história em quadrinhos "Persépolis"

THOMAS SOTINEL


Todos esses pixels nos fizeram esquecer a emoção que caracteriza o desenho animado, a sensação singular despertada pelo espetáculo de uma imagem em duas dimensões que se põe em movimento.
Ainda que a imagem já nos seja familiar, a sensação de admiração traz com ela alguma coisa de inquietude -será que todas as possibilidades que a contemplação de um trabalho em quadrinhos nos oferece serão realizadas?
Para sorte dos leitores e leitoras de "Persépolis", a resposta é positiva. Em uma hora e meia, a vida desenhada que percorria os quatro álbuns de Marjane Satrapi se transforma em vida cinematográfica no longa de animação de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, com Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni e Danielle Darrieux.
"Persépolis" é uma narrativa sobre as memórias de Marjane Satrapi desde sua infância, à véspera da queda da monarquia iraniana, em 1979. Mal temos tempo para nos espantar ao descobrir que Catherine Deneuve dá voz a Satrapi antes que a força da narrativa nos afaste dessas distrações menores.

Velha maldição
Como toda sua geração, Satrapi foi vítima de uma velha maldição -"que você viva em tempos interessantes".
Nascida em uma família de intelectuais de esquerda, viu seus tios libertados das masmorras iranianas, à época do xá, apenas para voltarem a desaparecer, dessa vez aprisionados por ordem da República Islâmica.
Seus amigos, seus primos caíram vítimas da guerra contra o Iraque, suas amigas tiveram de se submeter aos preceitos dos mulás. Mas o objetivo de "Persépolis" não é servir como retrato de uma geração.
A idéia é a de simplesmente levar à tela o retrato de uma jovem. Trata-se de um exercício sem precedentes, e "Persépolis" talvez venha a se tornar o filme fundador de um novo gênero, a autobiografia de animação.
Para isso, Satrapi procurou um co-diretor, e o encontrou em Vincent Paronnaud.
Desenhista de quadrinhos, como ela, ele já havia dirigido um curta-metragem de animação. Isso talvez sirva para explicar o fato de que "Persépolis" parece se adaptar com muita naturalidade à condição de filme.

Traço econômico
A simplicidade do traço de Satrapi é exposta, desde o início, em um mundo vívido, composto por fundos às vezes geométricos, às vezes recobertos por brumas de um cinzento intoxicante. Enquanto uma narrativa no interior da narrativa conduz o espectador a um episódio da história iraniana, o traço se torna ainda mais econômico, e o movimento dos personagens se calca de modo ainda mais deliberado naquele de marionetes de papel.
Enquanto vemos uma das tias da pequena heroína na condição de vítima da perseguição dos novos dirigentes (ela precisa suplicar que permitam que seu marido saia do país para uma cirurgia cardíaca), a direção não oculta em nada os preconceitos da pobre mulher, que demonstra todo o seu desprezo pelo diretor do hospital. "Meu antigo lavador de vidraças", ela exclama.

Heavy metal
A fronteira entre a sátira e o horror puro é tênue em "Persépolis", e o filme não se cansa de cruzá-la. Marjane, adolescente, procura fitas de heavy metal no mercado negro quando surge um comando de muçulmanos fanáticos.
A maneira com o negro dos mantos dos religiosos invade a tela, ameaçando sufocar a pobre heroína, demonstra que os realizadores não hesitaram em recorrer à herança expressionista.
A última singularidade do filme é oferecer um contraponto aos grandes filmes oriundos do Irã no último decênio. "Persépolis" não coloca em cena a realidade, mas uma memória lapidada pelo tempo e pela distância.
Quem poderia imaginar que um desenho animado se prestaria tão bem à expressão do dilaceramento que o exílio causa?

Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci.


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