São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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A aprendizagem do mal

São Paulo é a protagonista de "Babel Babilônia", que funde experimenta- lismo com linguagem de filme B

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Por filme de classe B costuma-se entender aquele cujo diretor, dispondo de pequeno capital, elabora de modo convencional uma trama corriqueira. Pode-se conceber que uma película dessa categoria seja abordada de maneira experimental?
O paradoxo estaria em que o experimentalismo, exitoso ou fracassado, é sempre anticonvencional. Mas, ao reler "Babel Babilônia", de Nelson de Oliveira, não escapo do paradoxo: eis um texto cuja matéria seria própria a um texto de classe B, enquanto sua tessitura é experimental.
Menos importa se investida de êxito ou não. Seja como for, é uma experiência em que se deve pensar.
Eis a encenação de uma grande metrópole que não se confunde com um "flagrante do cotidiano". Aí mesmo principia seu experimentalismo.
Ele tem como conseqüência não se reconhecer que gênero de ficção concretizaria. Seria um conjunto de contos ou um romance de narrativa descontínua? Ambas as caracterizações parecem insuficientes.
São relatos de intensidades autônomas, não necessariamente interconectadas, dentro da mesma ambiência de uma babilônica São Paulo. Caso essas intensidades fossem de todo autônomas, seriam contos. Mas há um relato que funciona à maneira de centro, "Beatriz".
A fim de justificar a decisão quanto ao gênero, associo "Beatriz" ao relato cuja ligação é evidente, "Por que o Mundo Não Se Esforça pra Me Fazer Feliz?".
Relacionando-os, digo: é, sim, um romance. Seus incontestes hiatos resultam de que o protagonista não é uma criatura humana, e sim a metrópole devoradora: "Não adianta querer preservar o presente pra sempre, a avalanche é inevitável".
No intervalo da catástrofe prenunciada, figuras e figuras aparecem e somem, expostas em diálogos que parecem provir de algum reality show ou semelhante televisivo. Beatriz é apenas a figura que mais insiste; aquela que mais concentra o que se dispersa entre as demais.
No relato que traz seu nome, é uma menina de oito anos cuja família acabara de se mudar para uma pequena cidade. No dia seguinte à chegada, seu pai a leva à padaria. Na volta, param diante de um terreno baldio, coberto de carrapicho e capim-bambu. Que o pai, um corriqueiro gerente de banco, nele via de interessante para que o encarasse com tanta atenção?
Para a filha, nada ali havia senão mato e a aparência de uma trilha. Não entende por que o pai deixa as compras na calçada, por que a beija e penetra pela senda.
Aos poucos, seu vulto desaparece. Apenas o que seria a lembrança da cena por Beatriz -"reconheceu no último olhar desse homem que se distanciava o melhor e mais sincero adeus que um pai podia confiar a uma filha"- serve de sinal de que o desaparecimento fora intencional.
O lugar em que o pai sumira servirá, para Beatriz, de iniciação para a vida. Por ele, depois, penetrará e chegará ao boqueirão que o ladeia. Nada aí faz senão permanecer parada. O assunto se propaga pela pequena cidade.
Ninguém se atreve a interferir senão um menino aleijado. O que os outros não entendem é, para Beatriz, a irrepreensível aprendizagem da maldade. Da maldade e do amor. Pois o aleijado, na procura em ajudá-la, penetra no território que a Beatriz parecia ser seu. Para ela, o menino é um intruso. Puxa briga com ele e lhe passa uma rasteira.
Embora de imediato se alegre com a vitória, sente depois a falta de sua vítima.

Arrependimento
Passado um mês, com pequena variação, a cena se repete. O menino lhe oferece um pião. Mas a aprendizagem do mal já fizera, em Beatriz, seu caminho. Ela termina por lançar o pião pelo barranco. À sua procura, o aleijado lança-se pela ribanceira.
Arrependida, Beatriz vai atrás. Teria morrido ou seu desaparecimento repetiria o que sucedera com o pai? O leitor esperaria que o acontecimento se desenvolvesse. Mas o protagonista não é Beatriz, senão a cidade.
No próximo relato, duas crianças discutem sobre um edifício em construção. Será ou não positivo quando estiver pronto? Os pais das crianças divergem, e essas mutuamente se ofendem.
Quando Beatriz retorna ao fio da narrativa, é uma mulher. O que se punha diante dela quando criança é agora uma mata, que termina em um declive. Abaixo, flui um rio. Ao olhá-lo, Beatriz vê que suas águas transportam um afogado. É uma resposta ao desaparecimento do pai ou idéia fixa sua? O leitor não o saberá.
Agora adulta, Beatriz tem um emprego e precisa terminar um relatório. Não deve estar bem com a vida, pois comprara um revólver e, com ele, vai à casa de, chamemos assim, um guru.
Antes parece um espertalhão. Alguém que reúne conhecimentos de astrologia, de técnicas orientais e se diz crente de haver inventado desde o "Mágico de Oz" até "Guerra nas Estrelas".
A aprendizagem do mal pela Beatriz criança é suficiente para que saiba que Ben, o guru, não passa de um forjador de truques.
Mas teria suas habilidades, pois se apodera, sem que ela perceba, do revólver que trazia.
A quem ela pretendia atingir? Por que se dirigira à casa do embusteiro? À falta de definição, acrescenta-se o motivo que se acumula desde o desaparecimento do pai e a visão do afogado.
Desejaria Beatriz matar-se como parece ter feito o pai? Não importa. Não é ela a protagonista cujos meandros fossem detalhados, mas a metrópole e a multiplicação dos edifícios. Sucede que o protagonista só pode falar pelas interpostas pessoas.
Portanto, não é nessas que há de se encontrar o tema que alimenta seus relatos.
O tema obsessivo do verdadeiro protagonista é sua expansão; o alto a perseguir e a atingir.
O alto industrial é, ao mesmo tempo, a paródia e a mistificação do "alto" religioso. Magia e religião, técnicas orientais de concentração e poder -Ben dispõe de várias jovens a seu serviço-, voracidade prometeica, crença de um garoto de haver sido traído pela namorada, que, na verdade, havia sido seqüestrada, são os enredos que enredam as formigas, isto é, os humanos, depostos ao rés da terra.
Do alto, a nova torre de Babel olha indiferente para os que a construíram e hoje formam a nova Babilônia. A linguagem midiática, o cinema de classe B convertem-se em material para um experimentalismo inédito.

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ).


BABEL BABILÔNIA
Autor:
Nelson de Oliveira
Editora: Callis (tel. 0/xx/11/ 3068-5600)
Quanto: R$ 35 (168 págs.)



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