São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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Ponto de Fuga

O ogro e a arte

Jorge Coli
especial para a Folha

A efervescência intelectual de Viena no início do século 20 era extraordinária. Freud, Mahler, Klimt, Schiele, Schoenberg, entre tantos, faziam parte dela, num pleno apogeu criador. Foi para lá também, nessa época, um moço provinciano que se acreditava artista. Entre 1906 e 1913, tentou por duas vezes entrar para a Academia de Belas-Artes sem conseguir. Não revelou o fracasso à sua família; sobreviveu pintando algumas aquarelas e vistas da cidade por encomenda, dizendo-se aluno da Imperial Academia. Dormiu embaixo de pontes, morou num refúgio para pobres. Desenhava projetos de arquitetura e sonhava com espetaculares transformações urbanas. Assistiu a "Rienzi", ópera cheia de generosos sentimentos revolucionários que Richard Wagner compôs em sua juventude, numa representação dirigida por Mahler. Saiu transfigurado do espetáculo, sentindo que seu grande destino estava selado.
Mais tarde, escreveria: "Naquela hora, tudo começou". Esse rapaz sensível, de sentimentos estéticos exaltados, chamava-se Adolf Hitler.
Momentos definitivos nos começos de sua formação intelectual constituem o tema para a exposição "Prelúdio para um Pesadelo - Arte, Política e os Anos Iniciais de Hitler em Viena". Organizada por Debora Rothschild, ocorre no Williams College Museum of Arts, em Williamstown, Massachusetts, EUA. Mostra decisiva, disse dela um crítico da "New Yorker". Deve, com efeito, ser notável: sua qualidade transparece na brochura que lhe serve de catálogo, inteligente, estimulante, perfeitamente ilustrada.

Utopia - As aquarelas de Hitler são anêmicas e patéticas; seus projetos arquitetônicos têm um ar desenxabido. Mas o "Führer" possuía o sentido do espetáculo e o dom para escolher colaboradores. O arquiteto Albert Speer concebeu os edifícios, as cidades, os desfiles sonhados por ele; a cineasta Leni Riefenstahl exaltou a disciplina nazista e a raça ariana.
Na brochura de Williamstown fica bem claro o quanto Hitler fora marcado pelas paradas que vira quando jovem, em Viena, destinadas a reforçar a unidade das 30 nações que compunham o Império Austro-Húngaro, e não menos pelas procissões solenes, místicas, sacralizadas, que descobria nas óperas de Wagner.
Ela traz também fotografias em que Hitler ensaia gestos eloquentes: eram instrumentos de estudo que lhe permitiam, como a um ator, melhorar seu desempenho diante das massas.
Hitler queria a beleza no mundo, ou melhor, um mundo feito de beleza: nisso ele era moderno como a art nouveau, como a Bauhaus. Mas fazia uma fusão entre os ideais clássicos greco-romanos e a cultura popular teutônica, misturando também eugenia e arte. Raça e criação artística pareciam estar se degenerando. Deviam, portanto, se regenerar pela supressão do feio e do impuro. Um crítico nazista, Paul Schultze-Naumburg, fez centenas de conferências, mostrando slides que comparavam obras expressionistas e fotos de seres humanos com as piores deformações físicas. Uns e outros eram condenados à destruição.

Bruxa - Leni Riefenstahl sobreviveu longamente ao nazismo. Completou 100 anos em 22 de agosto e encontra-se em plena forma, apesar de um acidente de helicóptero sofrido em 1999. Aprendeu a mergulhar aos 70 anos. Continua fazendo isso até hoje. Terminou de montar um filme sobre o fundo do mar; é militante ecológica e contribui para o Greenpeace. Passa por evidente reabilitação, apesar de algumas acusações e processos jurídicos. Diz que nunca fez escolhas políticas, apenas estéticas. Declarou: "Sempre vi mais o bom e o belo do que o feio e o doente. Meu otimismo faz com que eu prefira naturalmente captar a beleza da vida".

Infâmia - As frases de Leni Riefenstahl sobre a beleza e a vitalidade parecem inocentes. Mas, ao identificarem o belo ao sadio, atribuem uma verdade natural a critérios de apreciação. Não apresentam conflito nenhum com o projeto nazista, antes, reforçam-no por suas escolhas. Brotam de um otimismo seletivo e obsceno. Pressupõem uma pureza que destrói o humano. Conferem ao belo a mais monstruosa das feições.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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