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+ sociedade
Um roteiro do espaço-tempo
Getty Images
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O físico alemão Albert Einstein (1879-1955) relaxa em praia da Califórnia, em foto de 1932 |
Parceiro de Buñuel, Jean-Claude Carrière fala de seu livro sobre Einstein, que está saindo no Brasil, e diz que o cinema é escravo da técnica
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
Roteirista e escritor
com livre trânsito na
literatura, no cinema e no teatro, o
francês Jean-Claude
Carrière é famoso pelas parcerias com o diretor Luis Buñuel
-que gerou obras-primas como "A Bela da Tarde"- e com o
veterano diretor teatral inglês
Peter Brook. Para este último,
adaptou o texto religioso indiano "O Mahabharata", transformado em filme.
"Homem de literatura", como se define, Carrière está lançando no Brasil "Einstein, Explique, Por Favor" (Rocco,
trad. de Maria Ângela Villela,
160 págs., R$ 26), livro que
aborda conceitos básicos da física moderna e é resultado de
20 anos de pesquisa.
Em entrevista à Folha, ele
explica por que se aventurou
em produzir divulgação científica, fala da literatura atual e
diz que a tecnologia digital está
acabando com a força do cinema. Para o ex-diretor da principal escola de cinema francesa,
o teatro é hoje a forma de expressão mais viva.
FOLHA - Por que o sr. decidiu escrever sobre física?
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE - Primeiramente porque a física foi a
grande vedete das ciências do
século 20, esteve na vanguarda
e foi seguida pelas outras.
Além disso, há 20 anos trabalho com físicos e astrofísicos.
Sou totalmente literário de formação, mas, quando cheguei
perto dos 50 anos, me perguntei se iria morrer idiota, negligenciando a maior revolução
do espírito do século 20.
Encontrei dois astrofísicos
que se tornaram meus amigos
[Jean Audouze e Michel Cassé]
e começamos a trabalhar juntos um dia por semana. Fizemos um livro, "Conversations
sur l"Invisible" [Conversas sobre o Invisível]. Foi um grande
sucesso. Trabalhei com outros
cientistas e pensei em fazer um
livro sozinho, com meus meios
literários, dar uma idéia do que
foi essa revolução científica.
Einstein é a figura favorita,
evidentemente. Além disso comemorávamos os 50 anos da
sua morte e o centenário dos
seus artigos de 1905, que mudaram nossa visão de mundo.
FOLHA - Por que optou por uma
menina viajando no tempo e conversando com Einstein? "O Mundo
de Sofia", de Jostein Gaarder, e a ficção científica foram inspirações?
CARRIÈRE - A ficção científica
certamente. Mas me inspirei
em uma frase dita a mim por
um físico: "Você sabe que ainda
hoje continuamos a trabalhar
com as equações de Einstein?".
Ou seja, continuamos a analisá-las e descobrimos coisas que
talvez Einstein não soubesse
que havia estabelecido. Daí me
veio a idéia de que Einstein ainda está produzindo. Seja vivo
ou morto, não importa. A menina diz: "Einstein, você disse que
o tempo não existe". Essa frase
é a chave que me abriu o livro.
A partir daí trabalhei como
um roteirista, imaginando um
cenário que não seria localizado no espaço e no tempo, mas
que seria um "espaço-tempo"
com portas que se abrem para
onde quisermos. Gostei da
idéia de que Einstein está ciente do que ocorre hoje e que continuamos a trabalhar com suas
equações. Ou seja, com ele.
FOLHA - Em seu livro, foi mais importante a divulgação da ciência do
que a pretensão literária?
CARRIÈRE - Sim. O aspecto científico pesou mais do que o charme possível da literatura. Einstein temia muito que o tomassem por escritor, poeta, louco,
gênio ou profeta. Dizia que era
apenas um cientista.
Outra coisa que me levou a
escrever foi que Einstein, durante toda sua vida, se preocupou em explicar suas teorias
para os leigos, com palavras
simples. Respondeu de próprio
punho todas as cartas que recebia, mesmo as de idiotas ou loucos. Acho isso admirável.
FOLHA - Como está a ficção científica hoje?
CARRIÈRE - Acho que ela foi superada pela ciência, de alguma
forma. A época de ouro da ficção científica são os anos 50.
Ainda leio revistas do gênero,
mas acho que apenas um texto
em cada dez traz alguma idéia
que me atrai. Em particular, o
que me parece ter envelhecido
é a "space opera", a construção
de um mundo totalmente diferente em outro lugar.
Acho que a ficção científica
se exprime melhor nos contos,
nas narrativas curtas. Há boas
histórias, mas elas apenas repetem situações que um velho leitor como eu acha que já leu diversas vezes. Também poderíamos falar isso do romance.
FOLHA - O romance está em crise?
CARRIÈRE - Sim, na França há
apenas um ou dois autores como Michel Houellebecq, que,
baseados na sociedade contemporânea, conseguem dizer coisas fortes na forma romanesca.
Não é o caso da poesia. Pelo menos aqui na França, há 60 anos,
depois dos poetas surrealistas,
a poesia está morta. Ainda é
produzida, talvez tenhamos
bons poetas, mas não encontra
mais eco entre os leitores.
FOLHA - Hoje, qual é a importância
de Buñuel, com quem o sr. trabalhou na sua última fase?
CARRIÈRE - Assim como Pasolini
e outros cineastas, Buñuel foi
testemunha de uma época em
que o cinema atingiu uma liberdade de expressão que desapareceu. Vemos hoje seus filmes
com uma espécie de nostalgia,
já que refazer filmes como "O
Fantasma da Liberdade" seria
impossível atualmente.
Na luta entre o cinema de
imaginação e o comercial, o último ganhou, é inquestionável.
Mas é bom que filmes como os
seis que fiz com ele ainda sejam
vistos. Não sou totalmente pessimista, só um pouco.
FOLHA - A tecnologia digital não
facilitou a produção de filmes?
CARRIÈRE - É exatamente o contrário. Quanto mais a técnica é
fácil, mais a idéia é difícil. Nunca foi tão difícil fazer uma imagem inesquecível como a da lâmina em "Um Cão Andaluz"
[1928, de Luis Buñuel], uma das
imagens fortes do século 20. É
muito difícil fazer apenas uma
com essa qualidade. A aparente
facilidade técnica é uma mentira, um erro. A técnica sempre
teve a pretensão de poder dispensar a idéia, o pensamento.
E o resultado lamentável são
esses filmes feitos em vídeo,
com câmeras no ombro, digitais, sem nenhuma atenção dispensada ao roteiro e à direção
propriamente dita. Isso mostra
como é perigoso acharmos que
os aparelhos farão filmes nos
substituindo. Dirigi uma escola
de cinema por dez anos [a Femis, Escola Nacional Superior
de Ofícios da Imagem e do
Som] e sei do que estou falando.
FOLHA - Além da física, o sr. já havia pesquisado um texto religioso
indiano, "O Mahabharata", filmado
por Peter Brook em 1989. Qual a relação entre esses domínios e a literatura, o cinema e o teatro?
CARRIÈRE - Vi Peter ontem...
Acho que seria artificial encontrar relações entre Einstein e
"O Mahabharata", mas precisei
pesquisar documentos e trabalhar durante anos. As direções
de pesquisa são diferentes, ainda que seja possível dizer que
Einstein também é um mito,
assim como alguns personagens de "O Mahabharata". Podemos pensar que um desafio
foi estudar como abordar o mito. Peter adorou "Einstein...".
Não sei se vamos voltar a trabalhar juntos, porque ele agora
se dedica ao "teatro das pequenas formas", peças com dois
personagens, de Beckett... Ele
tem 91 anos... E eu acabo de
completar 75. "O Mahabharata" nos tomou 11 anos...
O teatro é hoje a forma de expressão mais viva. Ele é constantemente renovado no mundo inteiro e conseguiu superar
no século 21 as regras do teatro
clássico, enquanto o cinema
ainda está prisioneiro da técnica. Um filme ainda é um retângulo projetado em uma parede.
Pensemos em tudo o que
aconteceu na história do teatro... É impressionante. Há grupos no mundo inteiro que fazem um bom trabalho. Sua
grandeza é que não dura, é o
triunfo do efêmero.
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