São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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O velho e podre OESTE

Herdeiro de Faulkner, Cormac McCarthy pinta, em "Onde os Velhos Não Têm Vez", uma civilização dominada pela barbárie

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Cormac McCarthy é um dos maiores escritores americanos vivos, herdeiro de Faulkner e da melhor tradição sulista. Seus livros retomam a mitologia do velho Oeste para transformá-lo, sob um arrebatamento de inspiração bíblica, num território épico povoado de heróis trágicos.
É o caso dos protagonistas de "Meridiano Sangrento" e de "Todos os Belos Cavalos", romances de formação (ambos publicados no Brasil) em que o confronto com a violência do Oeste, visto como o que está à margem, na fronteira, no limiar, serve de rito de passagem para adolescentes em contato direto com a natureza agreste do deserto e com o pior e o melhor da humanidade.
A julgar por "Onde os Velhos Não Têm Vez", publicado em 2005 nos EUA, essa é uma formação que não termina nunca. O romance é narrado em parte por um velho xerife que, às vésperas da aposentadoria, quando achava já ter visto tudo, ainda se espanta diante do mal.
Homem recluso, avesso ao marketing, autor de romances sem concessões, McCarthy mantinha uma vida isolada, em El Paso, no Texas, até ser resgatado pela mídia ao conceder uma entrevista ao "New York Times" por ocasião do lançamento de "Todos os Belos Cavalos", em 1992.

Ágil, mas convencional
Desde então, o autor difícil passou a receber o tratamento publicitário reservado aos best-sellers pelo mercado editorial americano e o internacional.
Não se sabe até que ponto uma coisa terminou por influenciar a outra (a literatura não deve ser julgada pelo que lhe é exterior nem pela imagem que os críticos fazem dos autores), mas o fato é que, apesar do desencanto com a derrocada do mundo que o velho xerife exprime em "Onde os Velhos Não Têm Vez" ou talvez por isso mesmo, o romance é muito mais convencional que os projetos mais ambiciosos do autor.
Livro ágil, que se lê com interesse e com rapidez, escrito à maneira de um desses roteiros do cinema independente americano, ambientados na fronteira do México, que costumam receber o selo de aprovação do festival de Sundance e que, embora aparentemente imunes a Hollywood, também reproduzem um modelo narrativo.
A violência sempre esteve presente nos romances de McCarthy. Assim como o estilo cinematográfico da narração. O escritor já foi comparado a Sam Peckinpah. A diferença é que, neste romance, a própria realidade parece ter se convertido num filme de Tarantino.
Os personagens parecem saídos de um roteiro (ou feitos para se encaixar nele), assim como as cenas e a estrutura de ações intercaladas. Há carros de traficantes queimados e abandonados no deserto. Há o fugitivo com uma mala cheia de dinheiro, passando as noites incógnito em motéis de fronteira.
Há o facínora psicopata atrás do dinheiro. E há o velho xerife, veterano da Segunda Guerra, carregando um passado de culpa e desiludido com os rumos da nação.
Uma caçada humana em que um homem foge com alguns milhões de dólares encontrados por acaso entre traficantes mortos, enquanto um assassino de aluguel segue os seus passos e um xerife tenta interromper o rastro da destruição.
Por mais violentas e físicas que sejam as coisas narradas, a impressão é de um imaginário de segunda mão, que já não desbrava novos territórios, mas reproduz, na forma, nas leis e na lógica, aquele que reconhecemos dos filmes de ação americanos -a versão cinematográfica do romance, que teve a colaboração do próprio autor no roteiro, deve estrear no ano que vem, com direção dos irmãos Ethan e Joel Coen e elenco composto por Javier Bardem, Woody Harrelson e Tommy Lee Jones.
Por meio do velho protagonista estarrecido com a derrocada ao seu redor, McCarthy fala da velhice e do desencanto do mundo, do tráfico de drogas, do mercantilismo, do esgarçamento das relações sociais e da civilização cedendo à barbárie.
Vem daí o belo título do romance. É um tanto perturbador, porém, pensar que a resignação desiludida do protagonista, disposto a pendurar as chuteiras diante do mal que o cerca, possa ter alguma ressonância na própria disposição do escritor aos 73 anos.
E que o romance já não se apresente como resistência, a desbravar territórios próprios e desconhecidos, mas procure seguir um modelo de narrativa de ação ao qual já estamos acostumados.

Leitura fácil
A leitura fácil de "Onde os Velhos Não Têm Vez", se não deixa de ser prazerosa, também não impõe nenhum desafio. É possível que não haja nada errado nisso. Mas, se é a resistência que nos dá a dimensão da liberdade, talvez não reste outra opção senão se resignar ao fato de que, no mundo concebido pelo desencanto tardio e radical de McCarthy, não são só os velhos que não têm vez. A literatura também não.


ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ
Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Adriana Lisboa
Editora: Alfaguara (tel. 0/xx/21/ 2556-7824)
Quanto: R$ 38,90 (252 págs.)



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