São Paulo, domingo, 01 de novembro de 2009

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Ponto de Fuga

Velhas casas


Essas antigas residências, que compõem uma paisagem urbana harmoniosa e precisa, são mais e mais devastadas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Basta atravessar alguma cidade mais antiga do interior que não tenha sido desfigurada pela riqueza e pelo progresso. São bem raras hoje. As fachadas, murais, alinham-se seguindo a reta das ruas, rentes à calçada, sem nenhum recuo. Sobem até esconder o telhado atrás de um murinho, chamado ático.
Tudo contribui para a impressão de ordem, de regularidade, de geometria regrada e calma. Essas paredes exteriores ostentam, com frequência, a ordem dórica. Mais ambiciosas, buscam também, algumas vezes, a delicadeza do jônico ou a opulência do coríntio. Sabem variar, com elegância, esse vocabulário e essa gramática. É muito raro que estejam ausentes, mesmo nos edifícios mais modestos.
Foi um modo arquitetural que ocorreu a partir dos anos de 1860, mais ou menos. Associou-se, via de regra, com a construção em tijolo.
Avançou pelo século 20, incorporando então, com timidez, alguma novidade "art nouveau" ou "art déco". Imobilizou-se com a crise de 1929: nada melhor do que a falta de dinheiro para preservar as formas originais dos edifícios. Foi uma arquitetura mal-amada. A modernidade nacionalista via nela alguma espúria influência europeia, uma traição ao passado de taipa, dos beirais proeminentes, nos tempos da colônia. Nas cidades históricas, muitas casinhas do século 19 "regrediram" para um aspecto do século 18, vítimas de restaurações concebidas por um purismo mal inspirado.
Hoje, há uma sensibilidade maior para com elas, mas ainda bem circunscrita e pequena. Essas antigas residências, que compõem uma paisagem urbana harmoniosa e precisa, são mais e mais devastadas.
Basta um passeio pelo Viejo San Juan, distrito histórico na capital de Porto Rico, situado numa ilhota, para perceber, por contraste, o quanto se perde com isso.

Paredes
O Viejo San Juan é uma cidade muito antiga [fundada em 1521 pelos espanhóis], dentre as primeiríssimas das Américas. Possui edifícios monumentais, alguns cuja data recua aos primeiros tempos da colonização. Fortificada, compacta, ela se fecha com restos imponentes de muralhas.
Mas a maioria das casas data, em seu aspecto exterior, de um período que começa com Isabel 2ª de Espanha. Construídas ou reformadas na segunda metade do século 19, assemelham-se como irmãs àquelas que recobriram o Brasil inteiro no mesmo período.
Tal linguagem clássica, esparramada também pela América Latina, com traços distintivos dos que caracterizavam então a arquitetura doméstica na Europa, permanece bastante desconhecida no que concerne suas origens e sua prevalência. Mas isso é outra história.

Se esta rua
Interessa agora que o Viejo San Juan foi restaurado com atenção muito fina. As cores são claras e elegantes. Suprimiram-se os fios de eletricidade, que correm em canalizações subterrâneas.
Como nas antigas cidades brasileiras, não há árvores nem plantas nas calçadas. Pedras retangulares recobrem as ruas: lisas, lustrosas, sua cor é um azul impensável, opalino, precioso como o de uma joia. O calçamento acrescenta uma sensação de irrealidade sonhada.

Quem pode
O Viejo San Juan demonstra como poderiam ser lindas as cidades que, no Brasil, veem sua antiga arquitetura destruída com indiferença.
Mas apresenta também uma dificuldade, que compartilha com os centros europeus históricos e valorizados. Tornou-se um lugar de prestígio. Uma boa casa ali vale de US$ 1 milhão a US$ 2 milhões ou mais. Um apartamento não se vende por menos de US$ 300 mil.
As estatísticas são expressivas. Em 1940, o Viejo San Juan contava 34 mil habitantes. No ano 2000, não atingia 4 mil.


jorgecoli@uol.com.br


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