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Ponto de Fuga
Velhas casas
Essas antigas residências, que compõem uma paisagem urbana harmoniosa
e precisa, são mais e mais devastadas
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Basta atravessar alguma
cidade mais antiga do interior que não tenha sido desfigurada pela riqueza e
pelo progresso. São bem raras
hoje. As fachadas, murais, alinham-se seguindo a reta das
ruas, rentes à calçada, sem nenhum recuo. Sobem até esconder o telhado atrás de um murinho, chamado ático.
Tudo contribui para a impressão de ordem, de regularidade, de geometria regrada e
calma. Essas paredes exteriores ostentam, com frequência,
a ordem dórica. Mais ambiciosas, buscam também, algumas
vezes, a delicadeza do jônico ou
a opulência do coríntio. Sabem
variar, com elegância, esse vocabulário e essa gramática.
É muito raro que estejam ausentes, mesmo nos edifícios
mais modestos.
Foi um modo arquitetural
que ocorreu a partir dos anos
de 1860, mais ou menos.
Associou-se, via de regra,
com a construção em tijolo.
Avançou pelo século 20, incorporando então, com timidez,
alguma novidade "art nouveau" ou "art déco". Imobilizou-se com a crise de 1929: nada melhor do que a falta de dinheiro para preservar as formas originais dos edifícios.
Foi uma arquitetura mal-amada. A modernidade nacionalista via nela alguma espúria
influência europeia, uma traição ao passado de taipa, dos
beirais proeminentes, nos tempos da colônia. Nas cidades históricas, muitas casinhas do século 19 "regrediram" para um
aspecto do século 18, vítimas de
restaurações concebidas por
um purismo mal inspirado.
Hoje, há uma sensibilidade
maior para com elas, mas ainda
bem circunscrita e pequena.
Essas antigas residências,
que compõem uma paisagem
urbana harmoniosa e precisa,
são mais e mais devastadas.
Basta um passeio pelo Viejo
San Juan, distrito histórico na
capital de Porto Rico, situado
numa ilhota, para perceber,
por contraste, o quanto se perde com isso.
Paredes
O Viejo San Juan é uma cidade muito antiga [fundada em
1521 pelos espanhóis], dentre
as primeiríssimas das Américas. Possui edifícios monumentais, alguns cuja data recua aos
primeiros tempos da colonização. Fortificada, compacta, ela
se fecha com restos imponentes de muralhas.
Mas a maioria das casas data,
em seu aspecto exterior, de um
período que começa com Isabel
2ª de Espanha. Construídas ou
reformadas na segunda metade
do século 19, assemelham-se
como irmãs àquelas que recobriram o Brasil inteiro no mesmo período.
Tal linguagem clássica, esparramada também pela América Latina, com traços distintivos dos que caracterizavam então a arquitetura doméstica na
Europa, permanece bastante
desconhecida no que concerne
suas origens e sua prevalência.
Mas isso é outra história.
Se esta rua
Interessa agora que o Viejo
San Juan foi restaurado com
atenção muito fina. As cores
são claras e elegantes. Suprimiram-se os fios de eletricidade,
que correm em canalizações
subterrâneas.
Como nas antigas cidades
brasileiras, não há árvores nem
plantas nas calçadas.
Pedras retangulares recobrem as ruas: lisas, lustrosas,
sua cor é um azul impensável,
opalino, precioso como o de
uma joia. O calçamento acrescenta uma sensação de irrealidade sonhada.
Quem pode
O Viejo San Juan demonstra
como poderiam ser lindas as cidades que, no Brasil, veem sua
antiga arquitetura destruída
com indiferença.
Mas apresenta também uma
dificuldade, que compartilha
com os centros europeus históricos e valorizados. Tornou-se
um lugar de prestígio. Uma boa
casa ali vale de US$ 1 milhão a
US$ 2 milhões ou mais. Um
apartamento não se vende por
menos de US$ 300 mil.
As estatísticas são expressivas. Em 1940, o Viejo San Juan
contava 34 mil habitantes. No
ano 2000, não atingia 4 mil.
jorgecoli@uol.com.br
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