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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Sai no Brasil "A Escola de Frankfurt", de Rolf Wiggershaus, o mais importante panorama histórico-biográfico da Teoria Crítica

A decadência de uma expressão

Marcos Nobre
especial para a Folha

Depois de mais de 15 anos de sua publicação na Alemanha, sai a edição brasileira do mais importante panorama histórico-biográfico da Teoria Crítica. O livro de Rolf Wiggershaus não apenas não tem concorrente no seu gênero, como mostra grande vigor ao sobreviver bem a esse período desde sua primeira edição, atestando uma profunda, ampla e competente pesquisa documental. Ou seja, mesmo com as novas e inéditas edições de obras de muitos dos pensadores da Teoria Crítica -como é o caso da finalização da edição completa dos escritos de Max Horkheimer e da correspondência e dos póstumos de Theodor W. Adorno, para citar apenas dois exemplos- e com o crescente volume de monografias sobre temas e períodos específicos das obras desses pensadores, o trabalho de Wiggershaus permanece, no geral, preciso e acurado, o que faz dele a mais importante fonte de consulta sobre a Teoria Crítica de que dispomos a partir de agora em português.

Presumida unidade
Isso significa, antes de mais nada, que o principal mérito do livro de Wiggershaus está em ter procurado apresentar "história, desenvolvimento teórico, significação política" de um conjunto de pensadores, desde os primórdios, na década de 1920, até a década de 1980. Para que isso seja possível, é preciso recorrer a uma presumida unidade ou referência comum a todos eles, o que viria a ser justamente a "Escola de Frankfurt". "Escola de Frankfurt" foi uma expressão muito usada, desde fins dos anos 1950 até meados dos anos 1990. Hoje é raro encontrar trabalhos que se utilizem dessa expressão. O mais comum é, hoje, a referência à Teoria Crítica, expressão que se tornou referência para um conjunto de pensadores desde a publicação, em 1937, do ensaio de Max Horkheimer "Teoria Tradicional e Teoria Crítica". Por que a mudança? O próprio Wiggershaus nos dá a pista. Referindo-se à obra pioneira de Martin Jay sobre a Teoria Crítica ("The Dialectical Imagination", 1973), que cobre o período de 1923-50, Wiggershaus nos diz que o livro de Jay trouxe o mito da Escola de Frankfurt para "o solo dos fatos históricos e mostrou claramente como a realidade oculta por trás da etiqueta "Escola de Frankfurt" é multiforme -etiqueta essa que se tornou parte integrante da história dos efeitos daquilo que ela designa e que não se pode mais rejeitar, independentemente do sentido mais ou menos limitado que se pode dar aqui à existência de uma escola". Dito de outra maneira, "Escola de Frankfurt" foi antes de mais nada um slogan de intervenção política, mais do que uma expressão que efetivamente designasse uma "escola de pensamento" ou uma unidade teórica de um conjunto de pensadores. (O melhor trabalho sobre esse desenvolvimento, ocorrido após a Segunda Guerra, em que a "Teoria Crítica" se tornou "Escola de Frankfurt", é certamente o de Alex Demiroviae, "Der Nonkonformistische Intellektuelle", 1999). Nesse sentido, a recuperação da expressão original "Teoria Crítica", fazendo quase desaparecer a expressão "Escola de Frankfurt", parece-me estar ligada ao projeto teórico (e político) de retomar a investigação interdisciplinar que é a marca distintiva dessa tradição intelectual, desde que Max Horkheimer se tornou o diretor do Instituto de Pesquisa Social, em 1930. É por essa razão que o mencionado livro de Martin Jay procura se ancorar na instituição Instituto de Pesquisa Social para contar o desenvolvimento da Teoria Crítica. E essa é também, em boa medida, a perspectiva de Wiggershaus, que procura, desse modo, fazer convergir obras teóricas, instituição e biografias. E a figura central da trama me parece ser sempre a de Max Horkheimer, sendo que a obra para a qual entendo confluir todo o esforço de reconstrução de Wiggershaus é a "Dialética do Esclarecimento" (ed. Jorge Zahar), de Horkheimer e Adorno, cuja publicação em livro se deu pela primeira vez em 1947. E é importante observar que Wiggershaus, nessa reconstrução, de modo nenhum ignora os pensadores e obras que normalmente são deixados de lado em trabalhos gerais sobre a Teoria Crítica, o assim chamado "círculo externo", que inclui nomes como os de Franz Neumann e Otto Kirchheimer, por exemplo.

Maquiavelismo
Nesse contexto, Horkheimer surge, no livro de Wiggershaus, como uma figura "maquiavélica" (ver a citação nas páginas 136 e 137), que tinha por objetivo (e conseguiu) "um modo de existência que estivesse voltado para o conhecimento da sociedade, mas que, quaisquer que fossem as circunstâncias, incluísse um alto padrão de vida" (pág. 137). Nesse sentido, Wiggershaus chega muitas vezes a impressionantes detalhes de remuneração e vantagens, especialmente quando as circunstâncias exigiram severos cortes no número de pesquisadores do instituto e nas remunerações, momento em que Horkheimer não hesita em colocar o seu próprio padrão de vida em primeiro lugar: "Quando o capital da fundação começou a minguar, por volta do final da década de 1930, o problema para Horkheimer consistia em preservar bastante cedo uma parte suficientemente grande do patrimônio para assegurar seu próprio trabalho científico durante longo tempo" (pág. 289).
Concretamente isso significou, por exemplo, financiar, no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, o projeto que resultaria anos mais tarde na "Dialética do Esclarecimento", em detrimento de um projeto interdisciplinar integrador das pesquisas das diversas ciências, em vista da elaboração de uma teoria crítica da sociedade, nos moldes defendidos pelo próprio Horkheimer no ensaio de 1937. Segundo Wiggershaus, essa vitória do projeto pessoal em prejuízo do interdisciplinar se deveu "ao medo de Horkheimer e de sua mulher de não poderem dispor de proventos principescos" (pág. 277). Nesse sentido, fica sempre a impressão de que os elementos biográficos, no final das contas, são mais decisivos do que os outros dois elementos, o institucional e o da obra teórica.
De qualquer forma, esse é apenas um exemplo de como Wiggershaus procura fazer convergir história institucional, biografia e obra teórica, ainda que um exemplo não apenas significativo, mas também central na argumentação do livro. Estando correta a impressão de que toda a reconstrução de Wiggershaus tem como ponto de fuga a "Dialética do Esclarecimento", seria possível concluir que o "maquiavelismo" de Horkheimer em privilegiar esse projeto pessoal de certa maneira se justificou a posteriori, dados os rumos da Teoria Crítica no pós-guerra. Mas isso significa também que pretender retomar o projeto interdisciplinar da Teoria Crítica passa hoje muito provavelmente por colocar em segundo plano a própria "Dialética do Esclarecimento" e seu quadro teórico.
Para concluir, algumas poucas palavras sobre a edição brasileira. Infelizmente, trata-se de uma tradução da tradução francesa e não uma tradução direta do original alemão. Além disso (ou, talvez, por causa disso), os erros são muitos e as passagens incompreensíveis ou dúbias se avolumam. Não bastasse isso, nem mesmo foram consultadas e utilizadas as edições brasileiras disponíveis dos autores da Teoria Crítica citados. Para que se tenha uma idéia do descaso com o leitor brasileiro e com as obras em questão, basta ir à página 548 da edição brasileira do livro de Wiggershaus, em que é citado um fragmento (o de número 19) do livro de Adorno "Minima Moralia", do qual temos uma muito boa edição no Brasil. O título do fragmento, que a edição brasileira de "Minima Moralia" (ed. Ática) traduz, corretamente, como "Não Bater à Porta" (uma tradução um pouco mais livre diria: "Entre sem Bater"), foi transformado, na edição brasileira do livro de Wiggershaus, no absurdo: "Não Sondar o Terreno".


Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, autor, entre outros, de "Lukács e os Limites da Reificação" (Ed. 34) e de "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno" (Iluminuras/Fapesp).


A Escola de Frankfurt
742 págs., R$ 82,00 de Rolf Wiggershaus. Trad. Vera de Azambuja. Editora Difel (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, SP, tel. 0/xx/11/ 2585-2000).


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