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O ser e as nádegas
PEÇA INÉDITA DE CAMUS, AUTOR DE "O ESTRANGEIRO", PRENUNCIA RUPTURA
COM SARTRE AO SATIRIZAR "O SER E O NADA" E A LEVIANDADE DOS INTELECTUAIS
Camus faz um pastiche do existencialismo cujo ápice é a passagem na qual o sr. Vigne explica à mulher a razão pela qual, apesar de nada fazer sentido, ele deve se refestelar à mesa
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MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Numa entrevista de
1959, ao ser questionado sobre qual
seria o aspecto de
sua obra mais ignorado por leitores e críticos,
Albert Camus [1913-1960] respondeu com uma palavra: o humor. Se tivesse publicado em
vida a peça teatral "O Improviso dos Filósofos" [L'Impromptu des Philosophes] -que permaneceu inédita por 60 anos-, esse traço da obra camusiana
certamente não teria passado
despercebido entre seus contemporâneos.
"O Improviso dos Filósofos"
é uma comédia ou "divertimento" à maneira de Molière
-a começar pelo título, calcado em "O Improviso de Versalhes" (1663), primeira peça representada pelo dramaturgo diante de Luís 14.
O tema de Camus, porém, é
um outro tipo de realeza: a república dos intelectuais e, em
especial, a corte existencialista
reunida nos cafés do Rive-Gauche em torno de Jean-Paul Sartre [1905-1980].
A data provável da redação
de "O Improviso dos Filósofos"
-um manuscrito com 40 páginas- é 1947.
A informação é importante
por ser esse o ano em que Camus publicou o romance "A
Peste" e começou a esboçar "O
Homem Revoltado", livro de
1951 que provocaria sua ruidosa ruptura com Sartre.
Ou seja, "O Improviso dos
Filósofos" antecipa em alguns
anos as animosidades e diferenças entre ambos.
A peça já havia sido mencionada pelo biógrafo Olivier
Todd, autor de "Albert Camus
-Uma Vida" (ed. Record), e pelo
pesquisador Ronald Aronson,
autor de "Camus e Sartre - O
Polêmico Fim de uma Amizade
no Pós-Guerra" (ed. Nova
Fronteira), livro de 2004 recém-publicado no Brasil que
mostra como o rompimento
dessa relação pessoal explicitou fraturas ainda hoje presentes na vida intelectual francesa.
Ocorre que mais recentemente, com o lançamento dos
dois primeiros volumes da nova edição da obra completa de
Camus pela Bibliothèque de la
Pléiade (estão previstos quatro
tomos), "O Improviso dos Filósofos" se tornou finalmente
público -o que permite entender os antecedentes do atrito
com Sartre, mas não resolve as
ambigüidades desse texto que
Camus assinou sob o pseudônimo Antoine Bailly.
Filosofia em moda
Na peça, o sr. Vigne ("Videira", um farmacêutico de província e prefeito da cidade) recebe a visita do sr. Néant -um
intelectual parisiense cujo nome faz referência direta a "O
Ser e o Nada" (no original, "L'Être et le Néant"), ensaio de Sartre que lança as bases do existencialismo ao elaborar conceitos como liberdade, contingência, acaso e angústia de um
ponto de vista muito particular,
sob o impacto da fenomenologia de Husserl (1859-1938) e do
pensamento de Heidegger
(1889-1976).
A partir dessa cena básica,
em que o sr. Néant se anuncia
como portador da doutrina filosófica que é a última moda
em Paris, Camus envolve outras personagens (sra. Vigne, a
filha Sophie e o pretendente
desta, Mélusin) num pastiche
do existencialismo cujo ápice é
a passagem na qual Vigne explica à mulher a razão por que,
apesar de nada fazer sentido,
ele deve se refestelar à mesa.
Camus faz ali uma série de
variações sobre a idéia de que
nossa liberdade se constitui
quando resistimos ao olhar objetivante do outro, que deseja
transformar nosso "ser-aí" (o
"dasein" heideggeriano) num
"em-si" (um ente do mundo
inanimado) -e o efeito cômico
está na sofreguidão conceitual
que visa a justificar o acesso do
sr. Vigne ao pernil preparado
para a ceia.
Há várias alusões diretas a
Sartre, com deformações que
mostram o efeito do existencialismo sobre uma platéia ansiosa por um guru que ditasse
comportamentos transgressivos. Assim, após ler o livro que
Néant lhe traz, o sr. Vigne palestra com Mélusin e, baseado
na idéia sartriana de que "não
são as intenções que contam,
mas as ações", exige que o candidato a genro se encontre com
sua filha "entre quatro paredes" (referência à peça "Huis
Clos", de Sartre).
Afinal, só a existência de um
bastardo comprovaria factualmente a pureza de seu "engajamento" matrimonial...
Mais ridículo
Num outro momento, Vigne
se decepciona ao saber que Mélusin não é criminoso, não
oculta desejos incestuosos nem
se entrega às práticas da pederastia -uma alusão ao fascínio
que o dramaturgo Jean Genet
(1910-86, homossexual sadomasoquista que viveu entre a
delinqüência e a prisão) exercia
sobre Sartre.
Ao final da peça, surge um diretor de hospício desfazendo o
imbróglio e revelando que
Néant não passa de um maluco
que sai por aí divulgando livros
que jamais leu -uma ironia aos
modismos (e críticos literários)
parisienses que, de alguma forma, acaba "salvando" Sartre,
pois torna mais ridículos seguidores e apóstolos do que o messias existencialista.
Segundo Raymond Gay-Crosier (um dos organizadores da
edição da Pléiade), um dos motivos pelos quais Camus não
publicou "O Improviso dos Filósofos" é sua excessiva proximidade em relação a Molière
(que tampouco incluiu "O Improviso de Versalhes" na reunião de suas obras). De fato, o
glutão Néant parece saído das
páginas do "Tartufo", e Vigne é
um avatar do crédulo sr. Jourdain, de "O Burguês Fidalgo".
Mas não deixa de ser surpreendente que, após o sarcástico texto que Sartre publicou
na revista "Les Temps Modernes" (em resposta a carta de
Camus contestando resenha de
"O Homem Revoltado" que o
acusava de omissão histórica
em nome da moral), ele não tenha exumado esse manuscrito.
Afinal, na última cena de "O
Improviso dos Filósofos", na
fala do diretor do hospício, está
uma síntese da visão de Camus
sobre a frívola irresponsabilidade dos intelectuais franceses
(naquele momento, cegos para
as atrocidades cometidas em
nome das utopias comunistas):
"Gostamos tanto dos belos
pensamentos que não conseguimos parar de falar o dia todo, o que não deixa muito tempo para ler. Enlouquecemos a
tal ponto com o patriotismo
que acabamos sendo patriotas
por dois ou três países. Dilaceramo-nos em nome da paz e
prometemos a prisão em nome
da liberdade."
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