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O Mito de Sísifo de Camus
Em texto inédito em livro, o pensador tcheco que morou no Brasil reflete sobre
o sentido do suicídio
VILÉM FLUSSER
Os esquemas tradicionais para a divisão da literatura
em drama, poesia e literatura épica
nunca eram aplicáveis estritamente. Atualmente esses esquemas deveriam ser abandonados e com eles também as tentativas de uma classificação
mais ampla da literatura em
beletrística, científica, filosófica etc.
As obras mais importantes
da atualidade provam que todas essas gavetas estouraram.
"Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, por exemplo, situa-se entre um romance e
uma pesquisa psicológica e
existencial; "Ulisses", de Joyce,
entre um romance, uma poesia
lírica, um tratado de psicologia
de profundidade e uma pesquisa de psicologia social; "Dr.
Fausto", de [Thomas] Mann, é
um romance que contém um
tratado completo de musicologia, uma estética explícita, dois
tratados de teologia explícitos e
é, todo ele, uma exposição implícita de teologia; as poesias de
Eliot são pesquisas epistemológicas e ontológicas; os "Cantos" de Pound contêm, entre
outras coisas, uma filosofia da
cultura e da história; os trabalhos de Kafka não se enquadram em nenhuma repartição
concebível.
Também o "Mito de Sísifo",
de Camus, recusa-se a uma
classificação e exige que seja
sorvido e absorvido pelo leitor
tal qual foi escrito: como erupção inteiramente honesta de
um espírito imerso na tradição
filosófica, artística e científica
da atualidade.
Se queremos seguir Camus,
precisamos supor, com ele, que
existe somente um problema
real: por que não me mato? A
honestidade intelectual e moral me força a reconhecer que
tudo carece de significado, é
absurdo e se precipita em direção a uma morte absurda e sem
significado.
Todas as tentativas individuais e coletivas da humanidade, teóricas e práticas, de negar, esconder, esquecer ou adiar essa verdade básica são
outras tantas desonestidades.
Por que viver?
Nessa categoria se inclui, evidentemente, toda a majestosa
tradição cultural e civilizatória
da humanidade. Repito, portanto: por que não livrar-se de
toda essa absurdidade, matando-se a si mesmo? Por que viver
"quand meme"?
O conceito da absurdidade é,
em seguida, iluminado de vários ângulos e aproximado ao
nosso sentimento (nojo) e nossa razão (impossibilidade da
clareza e distinção), e o homem
honesto é definido como absurdo. A situação do homem absurdo é a do suicida no ato do
pulo, e o suicídio é o salto a partir do absurdo para o nada, portanto para o transcendente.
O suicídio é, portanto, uma
espécie de metafísica, um truque teológico, uma tentativa
desonesta de escapar ao absurdo. O suicídio deve ser, portanto, repelido, como toda outra
espécie de metafísica. É preciso, portanto, continuar vivendo
com o nojo, de dia para dia, de
momento para momento, viver
o mais possível, já que não se
pode viver o melhor possível.
Somente assim, devorando
quantidade em vez de qualidade, somente como Don Juan,
ator ou conquistador é o homem honesto.
A melhor maneira de abordar esse mundo camusiano é
com simpatia. Ele nos chama
com a voz da revolta contra
uma realidade que se fecha
diante de nosso sentimento e
nossa razão, uma realidade absurda, chama-nos portanto
com a voz da angústia da morte
e do desejo da morte.
É um mundo heróico de uma
luta perdida sem esperança já
antes de ter começado e perdida sempre de novo a cada instante. É o mundo da razão e do
sentimento pervertido contra
si mesmo ("cor inversum").
É o mundo da humanidade
do século 20, uma humanidade
que se afastou tão extremamente da fé numa realidade
transcendental que está pronta
a se precipitar no abismo físico
do suicídio coletivo ou no abismo metafísico de uma nova fé
em Deus.
Ética terrível
A situação da humanidade
atual é, portanto, honestamente absurda. Talvez foi por terem
reconhecido essa circunstância
que os senhores solenes em Estocolmo concederam a Camus
o Prêmio Nobel?
Devemos nós ceder a essa
ética horrível e viver "quand
meme"? Ou devemos cometer
a desonestidade e pular da janela? Ou a desonestidade é pular para dentro da fé? Afinal de
contas, o que é essa "honestidade" e de onde vem senão do
além da metafísica desonesta?
Com essa pergunta, assim me
quer parecer, podemos abandonar o mundo camusiano.
VILÉM FLUSSER (1920-91) foi um filósofo tcheco. Nasceu em Praga, de onde fugiu do nazismo.
Viveu no Brasil, onde lecionou filosofia e atuou
como jornalista, de 1941 a 1972. É autor de "Fenomenologia do Brasileiro" (ed. Uerj) e "Filosofia da Caixa Preta" (ed. Relume-Dumará).
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