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Ele tem a força
Vida cultural e intelectual na Rússia se divide diante da hegemonia política de Vladimir Putin, que deve fazer seu sucessor nas eleições presidenciais de hoje
Dmitry Lovetsky - 28.fev.2008/Associated Press
| Russos caminham em São Petersburgo tendo ao fundo cartaz com imagens de Putin e Medvedev |
JOÃO PEQUENO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Primeiro historiador
brasileiro a basear
uma tese sobre a
União Soviética em
arquivos disponibilizados com sua redemocratização, Angelo Segrillo chegou a
Moscou pela primeira vez no
auge da perestroika, em 1989.
Já então graduado em filosofia nos EUA, se especializou em
língua e literatura russa pelo
Instituto Pushkin, em 1992.
Nos anos 90, voltou à Rússia
várias vezes, pesquisando os
arquivos que serviriam de material para seu doutorado em
história pela Universidade Federal Fluminense, concluído
em 1999 e lançado no ano seguinte como "O Declínio da
URSS -Um Estudo de Causas"
(ed. Record).
Depois, lançaria mais três livros (um como co-autor), sempre tendo a Rússia como tema.
Nesse período, viu as transformações que a abertura para
o Ocidente e o capitalismo levaram às idéias russas.
Do entusiasmo com a liberdade intelectual e de consumo
do início da década os russos
passaram à desilusão causada
pela crise econômica, que, segundo ele, fez crescer o movimento "eslavófilo", defendendo uma sociedade russa "única" e dissociada da Europa.
Para Segrillo, que leciona no
departamento de história da
USP, à exceção dos intelectuais
clássicos, menos envolvidos
com política, o debate em torno
das eleições e do governo da
Rússia se reparte em dois campos principais.
Os eslavófilos, simpáticos ao
"homem forte" Putin -que, segundo as pesquisas, deve eleger
hoje seu candidato à sucessão
presidencial, Dmitri Medvedev, de quem pretende se tornar primeiro-ministro- e os
"ocidentalistas", que rejeitam
seu autoritarismo.
Segrillo fala também sobre o
que os russos leram ou estão
lendo, como Jorge Amado.
FOLHA - Como se coloca a intelectualidade russa diante do poder que
Putin trabalha para manter, seja como presidente ou como primeiro-ministro? Há reação ou ela é, de certa forma, conivente?
SEGRILLO - Ela está dividida. É
difícil falar em termos de estatística porque não existem estatísticas para isso. Grande parte apóia Putin, assim como boa
parte da população.
Se tivesse que pôr em porcentagem, eu diria que uns 40%
a 50% da intelectualidade
apóiam, 20% a 25% são contra
e outros estão numa posição intermediária. O apoio entre os
intelectuais é menor do que na
população.
Apesar da repressão aos opositores, se fosse candidato, Putin ganharia a eleição.
FOLHA - Qual é o motivo dessa diferença de níveis de apoio entre população geral e intelectuais? Economia versus liberdade?
SEGRILLO - Para os intelectuais a
questão da liberdade individual, da liberdade de expressão,
é sempre mais forte do que na
população em geral. Principalmente na Rússia, mas aqui
também, a população às vezes
troca as liberdades abstratas
pela estabilidade e pela boa situação econômica, que na Rússia é a principal causa da popularidade de Putin.
Nos anos 90, no governo de
Boris Ieltsin [1931-2007], a situação estava catastrófica, era
uma crise muito forte. Além
disso, os russos têm uma tradição de governo forte. Então, de
certa maneira, essa centralização que o Putin está fazendo,
até autoritária, bate bem em
uma parte da população.
Nos anos 90, havia uma série
de tendências "centrífugas" na
Rússia, com a Tchetchênia querendo se separar e Ieltsin dando muita liberdade aos governadores em troca de apoio. Então, Putin botou ordem na casa.
FOLHA - O fato de ter sido agente
da KGB, além de todo o know-how
de repressão, o coloca como um homem forte que os russos gostam de
ver no poder, tal qual um czar ou um
dirigente do Partido Comunista?
SEGRILLO - Exatamente. Putin
passou idéia de um homem forte desde o início.
FOLHA - Quais são as alas intelectuais mais contrárias e mais favoráveis a ele hoje?
SEGRILLO - Na Rússia, há um debate muito forte entre os chamados eslavófilos e os ocidentalistas. A questão foi iniciada
com o czar Pedro, o Grande
[1672-1725], que fez reformas
muito grandes no sentido ocidentalista.
Depois que ele morreu, a
Rússia se dividiu. Os ocidentalistas achavam a Rússia atrasada em relação ao Ocidente, tendo que incorporar elementos
mais modernos, para poder alcançá-lo. E os eslavófilos diziam que não, que a Rússia era
uma sociedade única, que não
era européia nem asiática.
Esse tipo de discussão vem
até hoje, entre aqueles que querem uma abertura maior para o
ocidente, como era visto Ieltsin, e Putin, que, apesar de não
ser abertamente um eslavófilo,
é mais bem visto por estes.
Então, a parte da intelectualidade que tende a apoiar mais
Putin são os eslavófilos, mas
existem também correntes
pragmáticas e fisiológicas.
FOLHA - E quem as compõe?
SEGRILLO - Entre os eslavófilos,
que costumam apoiar Putin,
tem o Nikita Mikhalkov, que é bem dessa
corrente. Ele é, inclusive, monarquista e acha que, nos anos
90, pisaram na Rússia, que havia muitas tendências anárquicas e que a forma liberal ocidental não é a única possível e a que melhor se ajusta à Rússia.
Defende um sistema com características russas próprias,
não a democracia liberal, onde
o cara faz uma caricatura pornográfica do presidente e pode
publicar e o presidente não pode fazer nada.
FOLHA - Isso não pode na Rússia?
SEGRILLO - Não, há vários tipos
de controles. Essas idéias, que
já estavam no ar, foram resumidas por um auxiliar de Putin,
Vladislav Surkov, vice-chefe da
Administração Presidencial,
sob o termo "democracia soberana", que não é criar uma ditadura, mas uma democracia
com controles maiores -o que
os críticos chamam de "democracia dirigida".
FOLHA - As manifestações públicas
seguem reprimidas?
SEGRILLO - Não são proibidas e
existe, de acordo com a Constituição, liberdade de expressão.
Mas elas têm que ser registradas na polícia e ter a permissão
das autoridades municipais.
FOLHA - Qual é o principal foco de
resistência a Putin?
SEGRILLO - O grupo mais organizado são os comunistas, na verdade o único grupo de oposição
relativamente grande. Os outros seriam os liberais, mas estes não conseguiram nem os
7% de votos para entrar na Duma [o Parlamento russo].
FOLHA - E no meio intelectual?
SEGRILLO - Entre os intelectuais, a porção de liberais é
maior que na população, mas
não há muitos. Um bem representativo é o Yurii Korguniuk
[leia texto ao lado]. Ele acha
que simplesmente não existe
mais democracia sob Putin.
FOLHA - O que os russos lêem
atualmente, em produção nacional
e internacional?
SEGRILLO - Eles vêm da tradição
clássica, que é a base de todos.
Há o intelectual clássico, que
não é tão politizado e fica no
meio, entre os eslavófilos e os
ocidentalistas.
Vêm depois os eslavófilos,
que são uma minoria, assim como os liberais ocidentalistas,
que têm ainda menos representantes, e os comunistas. Todos eles têm uma formação
clássica forte em comum.
Os eslavófilos tendem a ler
mais coisas sobre a Rússia e a
Ásia, enquanto os liberais lêem
mais coisas da Europa; da Rússia, tendem a enfatizar mais a
produção da porção européia.
Os comunistas têm a base
clássicas, mas enfatizam muito
a produção de esquerda, da
Rússia e de fora também. Por
exemplo, Jorge Amado [1912-2001] era muito lido no período
soviético.
FOLHA - Até que ponto a literatura
ocidental se popularizou na Rússia
com o fim da União Soviética?
SEGRILLO - Ela entrava já no período soviético pelo viés de escritores esquerdistas. Além de
Jorge Amado, escritores norte-americanos de crítica social de
esquerda, como Sinclair Lewis
[1885-1951] e John Steinbeck
[1912-1968]. Não entravam os
direitistas, vamos dizer assim.
Com a perestroika e o fim da
União Soviética, houve um
boom ocidentalista tanto para
produtos culturais "lixo" -como o filme "Rocky", programas
de TV como seria, por exemplo,
um BBB [Big Brother Brasil], e
literatura leve, como livros policiais e de auto-ajuda- quanto
para boa literatura.
Passaram a dispor de Jorge
Luis Borges [1899-1986] e Octavio Paz [1914-1986], que não
eram necessariamente de esquerda. E, também, a partir dos
anos 90, autores anticomunistas entraram fortemente: Robert Conquest, François Furet
[1927-1997], ex-comunista que
virou anticomunista ferrenho.
Hoje, lêem praticamente o que
a gente lê aqui.
FOLHA - Esses autores influenciaram a literatura e a intelectualidade
russas de modo determinante?
SEGRILLO - Essa literatura anticomunista foi muito influente
entre o período da perestroika
e o final dos anos 90, sobretudo
porque eram lidos pela primeira vez. Os russos são como os
brasileiros, um povo maximalista. Ou se é o melhor do mundo ou isso aqui é uma droga, onde nada do que se faz dá certo.
Não há muito meio-termo.
Passaram da União Soviética,
que se dizia a melhor, para, no
final da perestroika e no início
dos anos 90, achar que tudo era
melhor no Ocidente.
Depois, à medida que a crise
econômica aumentou, houve a
desilusão com o Ocidente e o
fenômeno Putin, que não é
uma volta ao comunismo, mas
resgata alguns aspectos do Estado russo forte, presentes tanto no czarismo quanto na
União Soviética.
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