São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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Ele tem a força

Vida cultural e intelectual na Rússia se divide diante da hegemonia política de Vladimir Putin, que deve fazer seu sucessor nas eleições presidenciais de hoje

Dmitry Lovetsky - 28.fev.2008/Associated Press
Russos caminham em São Petersburgo tendo ao fundo cartaz com imagens de Putin e Medvedev


JOÃO PEQUENO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Primeiro historiador brasileiro a basear uma tese sobre a União Soviética em arquivos disponibilizados com sua redemocratização, Angelo Segrillo chegou a Moscou pela primeira vez no auge da perestroika, em 1989. Já então graduado em filosofia nos EUA, se especializou em língua e literatura russa pelo Instituto Pushkin, em 1992.
Nos anos 90, voltou à Rússia várias vezes, pesquisando os arquivos que serviriam de material para seu doutorado em história pela Universidade Federal Fluminense, concluído em 1999 e lançado no ano seguinte como "O Declínio da URSS -Um Estudo de Causas" (ed. Record). Depois, lançaria mais três livros (um como co-autor), sempre tendo a Rússia como tema.
Nesse período, viu as transformações que a abertura para o Ocidente e o capitalismo levaram às idéias russas. Do entusiasmo com a liberdade intelectual e de consumo do início da década os russos passaram à desilusão causada pela crise econômica, que, segundo ele, fez crescer o movimento "eslavófilo", defendendo uma sociedade russa "única" e dissociada da Europa.
Para Segrillo, que leciona no departamento de história da USP, à exceção dos intelectuais clássicos, menos envolvidos com política, o debate em torno das eleições e do governo da Rússia se reparte em dois campos principais.
Os eslavófilos, simpáticos ao "homem forte" Putin -que, segundo as pesquisas, deve eleger hoje seu candidato à sucessão presidencial, Dmitri Medvedev, de quem pretende se tornar primeiro-ministro- e os "ocidentalistas", que rejeitam seu autoritarismo.
Segrillo fala também sobre o que os russos leram ou estão lendo, como Jorge Amado.  

FOLHA - Como se coloca a intelectualidade russa diante do poder que Putin trabalha para manter, seja como presidente ou como primeiro-ministro? Há reação ou ela é, de certa forma, conivente?
SEGRILLO
- Ela está dividida. É difícil falar em termos de estatística porque não existem estatísticas para isso. Grande parte apóia Putin, assim como boa parte da população.
Se tivesse que pôr em porcentagem, eu diria que uns 40% a 50% da intelectualidade apóiam, 20% a 25% são contra e outros estão numa posição intermediária. O apoio entre os intelectuais é menor do que na população. Apesar da repressão aos opositores, se fosse candidato, Putin ganharia a eleição.

FOLHA - Qual é o motivo dessa diferença de níveis de apoio entre população geral e intelectuais? Economia versus liberdade?
SEGRILLO
- Para os intelectuais a questão da liberdade individual, da liberdade de expressão, é sempre mais forte do que na população em geral. Principalmente na Rússia, mas aqui também, a população às vezes troca as liberdades abstratas pela estabilidade e pela boa situação econômica, que na Rússia é a principal causa da popularidade de Putin.
Nos anos 90, no governo de Boris Ieltsin [1931-2007], a situação estava catastrófica, era uma crise muito forte. Além disso, os russos têm uma tradição de governo forte. Então, de certa maneira, essa centralização que o Putin está fazendo, até autoritária, bate bem em uma parte da população.
Nos anos 90, havia uma série de tendências "centrífugas" na Rússia, com a Tchetchênia querendo se separar e Ieltsin dando muita liberdade aos governadores em troca de apoio. Então, Putin botou ordem na casa.

FOLHA - O fato de ter sido agente da KGB, além de todo o know-how de repressão, o coloca como um homem forte que os russos gostam de ver no poder, tal qual um czar ou um dirigente do Partido Comunista?
SEGRILLO
- Exatamente. Putin passou idéia de um homem forte desde o início.

FOLHA - Quais são as alas intelectuais mais contrárias e mais favoráveis a ele hoje?
SEGRILLO
- Na Rússia, há um debate muito forte entre os chamados eslavófilos e os ocidentalistas. A questão foi iniciada com o czar Pedro, o Grande [1672-1725], que fez reformas muito grandes no sentido ocidentalista.
Depois que ele morreu, a Rússia se dividiu. Os ocidentalistas achavam a Rússia atrasada em relação ao Ocidente, tendo que incorporar elementos mais modernos, para poder alcançá-lo. E os eslavófilos diziam que não, que a Rússia era uma sociedade única, que não era européia nem asiática.
Esse tipo de discussão vem até hoje, entre aqueles que querem uma abertura maior para o ocidente, como era visto Ieltsin, e Putin, que, apesar de não ser abertamente um eslavófilo, é mais bem visto por estes.
Então, a parte da intelectualidade que tende a apoiar mais Putin são os eslavófilos, mas existem também correntes pragmáticas e fisiológicas.

FOLHA - E quem as compõe?
SEGRILLO
- Entre os eslavófilos, que costumam apoiar Putin, tem o Nikita Mikhalkov, que é bem dessa corrente. Ele é, inclusive, monarquista e acha que, nos anos 90, pisaram na Rússia, que havia muitas tendências anárquicas e que a forma liberal ocidental não é a única possível e a que melhor se ajusta à Rússia.
Defende um sistema com características russas próprias, não a democracia liberal, onde o cara faz uma caricatura pornográfica do presidente e pode publicar e o presidente não pode fazer nada.

FOLHA - Isso não pode na Rússia?
SEGRILLO
- Não, há vários tipos de controles. Essas idéias, que já estavam no ar, foram resumidas por um auxiliar de Putin, Vladislav Surkov, vice-chefe da Administração Presidencial, sob o termo "democracia soberana", que não é criar uma ditadura, mas uma democracia com controles maiores -o que os críticos chamam de "democracia dirigida".

FOLHA - As manifestações públicas seguem reprimidas?
SEGRILLO
- Não são proibidas e existe, de acordo com a Constituição, liberdade de expressão. Mas elas têm que ser registradas na polícia e ter a permissão das autoridades municipais.

FOLHA - Qual é o principal foco de resistência a Putin?
SEGRILLO
- O grupo mais organizado são os comunistas, na verdade o único grupo de oposição relativamente grande. Os outros seriam os liberais, mas estes não conseguiram nem os 7% de votos para entrar na Duma [o Parlamento russo].

FOLHA - E no meio intelectual?
SEGRILLO
- Entre os intelectuais, a porção de liberais é maior que na população, mas não há muitos. Um bem representativo é o Yurii Korguniuk [leia texto ao lado]. Ele acha que simplesmente não existe mais democracia sob Putin.

FOLHA - O que os russos lêem atualmente, em produção nacional e internacional?
SEGRILLO
- Eles vêm da tradição clássica, que é a base de todos. Há o intelectual clássico, que não é tão politizado e fica no meio, entre os eslavófilos e os ocidentalistas.
Vêm depois os eslavófilos, que são uma minoria, assim como os liberais ocidentalistas, que têm ainda menos representantes, e os comunistas. Todos eles têm uma formação clássica forte em comum.
Os eslavófilos tendem a ler mais coisas sobre a Rússia e a Ásia, enquanto os liberais lêem mais coisas da Europa; da Rússia, tendem a enfatizar mais a produção da porção européia.
Os comunistas têm a base clássicas, mas enfatizam muito a produção de esquerda, da Rússia e de fora também. Por exemplo, Jorge Amado [1912-2001] era muito lido no período soviético.

FOLHA - Até que ponto a literatura ocidental se popularizou na Rússia com o fim da União Soviética?
SEGRILLO
- Ela entrava já no período soviético pelo viés de escritores esquerdistas. Além de Jorge Amado, escritores norte-americanos de crítica social de esquerda, como Sinclair Lewis [1885-1951] e John Steinbeck [1912-1968]. Não entravam os direitistas, vamos dizer assim.
Com a perestroika e o fim da União Soviética, houve um boom ocidentalista tanto para produtos culturais "lixo" -como o filme "Rocky", programas de TV como seria, por exemplo, um BBB [Big Brother Brasil], e literatura leve, como livros policiais e de auto-ajuda- quanto para boa literatura.
Passaram a dispor de Jorge Luis Borges [1899-1986] e Octavio Paz [1914-1986], que não eram necessariamente de esquerda. E, também, a partir dos anos 90, autores anticomunistas entraram fortemente: Robert Conquest, François Furet [1927-1997], ex-comunista que virou anticomunista ferrenho. Hoje, lêem praticamente o que a gente lê aqui.

FOLHA - Esses autores influenciaram a literatura e a intelectualidade russas de modo determinante?
SEGRILLO
- Essa literatura anticomunista foi muito influente entre o período da perestroika e o final dos anos 90, sobretudo porque eram lidos pela primeira vez. Os russos são como os brasileiros, um povo maximalista. Ou se é o melhor do mundo ou isso aqui é uma droga, onde nada do que se faz dá certo.
Não há muito meio-termo. Passaram da União Soviética, que se dizia a melhor, para, no final da perestroika e no início dos anos 90, achar que tudo era melhor no Ocidente.
Depois, à medida que a crise econômica aumentou, houve a desilusão com o Ocidente e o fenômeno Putin, que não é uma volta ao comunismo, mas resgata alguns aspectos do Estado russo forte, presentes tanto no czarismo quanto na União Soviética.


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