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A voz do profeta
De 1513, "Auto da Sibila Cassandra", de Gil Vicente, já mostra
como o criador do teatro português antecipou Brecht
SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com o lançamento do
"Auto da Sibila Cassandra" em tradução
portuguesa os professores Alexandre
Soares Carneiro e Orna Messer
Levin colocam à disposição do
leitor uma das obras menos conhecidas de Gil Vicente.
A edição bilíngüe organizada
pelos tradutores é enriquecida
com a inclusão de ensaio canônico do "scholar" Leo Spitzer,
que permite o contato com
uma tradição crítica em certo
sentido inédita no país, ao menos do ponto de vista da recepção habitual da obra vicentina
-ligada à tendência interpretativa que prioriza as peças em
português e o viés social, como
observa Carneiro em ótimo estudo incluído no volume.
A apresentação do texto pela
especialista Cleonice Berardinelli, a nota editorial em que os
organizadores mencionam a
edição "princeps" que seguiram, estabelecida por Manuel
Calderón, a iconografia sugestiva e as notas esclarecedoras
de dificuldades de ordem filológica, histórica e textual do
original castelhano são qualidades adicionais desta edição
primorosa.
Calendário litúrgico
O volume inclui informações
seguras para a contextualização histórica da peça, encenada
no mosteiro de Enxobregas, na
véspera do Natal de 1513, e endereçada à rainha Leonor
(1458-1525), protetora do dramaturgo e incentivadora da vida cultural da corte portuguesa
do século 16.
Ligada ao calendário litúrgico, nesse caso à comemoração
da natividade e às festividades
cortesãs, é uma breve composição dramática destinada à instrução e à devoção, como as outras criações do gênero.
Do parentesco evidente com
os mistérios medievais preserva o desapego a estéticas preconcebidas e a infiltração de
elementos profanos na temática litúrgica.
É inegável que Gil Vicente
adiciona ao auto um encanto
peculiar ao apresentar a profetisa homérica da queda de
Tróia em versão camponesa e
transformar o motivo da virgindade em recusa da pastora à
instituição do casamento, considerada "purgatório sem concerto ou temperança", que vai
contra seus anseios libertários.
Nas cenas iniciais em que
Cassandra vence o duelo verbal
com seu pretendente, ninguém
menos que próprio Salomão bíblico, é evidente o deslumbramento do dramaturgo com as
posições da protagonista.
As acusações de "insana" que
o filho de Davi lhe dirige são
minimizadas por sua caracterização como camponês rústico e
vaidoso, inconformado com a
recusa da moça e insistente na
exibição de seus dotes casamenteiros (em que o dramaturgo inclui 32 galinhas).
É verdade que, na segunda
parte do texto, a argumentação
inteligente de Cassandra, que o
crítico Robert Potter considera
feminista, abre espaço para a
sabedoria dos profetas Moisés,
Abraão, Isaías e do próprio Salomão, que abandonam o perfil
pitoresco para retomarem a defesa dos dogmas da fé.
Como nota Spitzer, "não é incoerente com a técnica de improvisação de Gil Vicente e com
sua desenvoltura dramatúrgica
que, no momento em que já não
necessita mais de Salomão no
papel de pretendente, tenha a
liberdade de transformá-lo em
um profeta de Cristo".
É exatamente nessa passagem que Cassandra revela o
verdadeiro motivo de sua recusa ao casamento, anunciando a
concepção de Cristo em si mesma. Diante da "blasfêmia" inconcebível, o auto perde a atmosfera de comédia de costumes para assumir um tom devoto, muito próximo dos mistérios medievais.
Na cena final do presépio, em
que o encenador Gil Vicente
monta um quadro vivo de poesia, música e dança, Cassandra
emudece para dar lugar às paráfrases bíblicas de louvação ao
Messias, antes de curvar-se
diante de Maria, que Spitzer
considera seu par antitético. O
ensaísta vê nessa cena operística uma verdadeira "obra de arte total" de apelo aos sentidos.
Em sua análise exemplar,
mostra que o principal tema da
peça é a profecia, já que todas as
personagens, com exceção de
Cassandra, anunciam o nascimento de Cristo em Maria.
Sínteses culturais
O tópos dominante no texto
explica o vínculo de figuras e
acontecimentos pré-cristãos
com personagens da cristandade, unidos no "cosmos unificado na expectativa do redentor",
a que Cassandra opõe sua
"hybris" pessoal e seu isolamento trágico.
A compressão da história e o
abandono da cronologia para a
projeção desse tempo que se
encurta na figuração de "sínteses culturais", apresentadas como quadros independentes em
sua lógica interna, sem dúvida
são precursores dos elaborados
mecanismos narrativos da cena
épica de Bertolt Brecht, como
observaram, com precisão, [os
críticos] Antonio José Saraiva e
Anatol Rosenfeld.
Além do mais, se os anacronismos e as superposições de
personagens bíblicos e pagãos,
o contínuo deslocamento de
planos, as várias inserções musicais e coreográficas, a mescla
de motivos seculares e religiosos resultam da filiação de Gil
Vicente aos traços essenciais
do gênero, a liberdade dessa
contaminação tem ressonância
no hibridismo característico da
dramaturgia contemporânea.
Desrespeito às normas
A atualidade da peça vem do
desrespeito a qualquer norma
de composição dramática, coerência de enredo ou verossimilhança de personagens.
Nesse sentido, é possível ampliar o leque de repercussões
do teatro vicentino.
Além das filiações sempre
lembradas, como os autos regionais de Ariano Suassuna,
Hermilo Borba Filho, João Cabral de Melo Neto e Vital Santos, da arte militante do Centro
Popular de Cultura (no "Auto
dos 99%"), do "Auto dos Bons
Tratos" (Companhia do Latão),
do teatro de revista e das comédias de costumes, é possível,
pelo olhar de Cassandra, imaginar que as dramaturgias de
Luís Alberto de Abreu, Newton
Moreno e Gero Camilo e espetáculos totais como "A Rua da
Amargura", (Gabriel Vilela com
o Galpão) e "O Livro de Jó"
(Teatro da Vertigem) continuam a trilha de realismo e abstração que o criador do teatro
português abriu entre nós.
SÍLVIA FERNANDES leciona história do teatro
na Escola de Comunicações e Artes da USP.
AUTO DA SIBILA CASSANDRA
Autor: Gil Vicente
Organização e tradução: Alexandre
Soares Carneiro e Orna Messer Levin
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/
3218-1444)
Quanto: R$ 32 (160 págs.)
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