São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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A voz do profeta

De 1513, "Auto da Sibila Cassandra", de Gil Vicente, já mostra como o criador do teatro português antecipou Brecht

SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com o lançamento do "Auto da Sibila Cassandra" em tradução portuguesa os professores Alexandre Soares Carneiro e Orna Messer Levin colocam à disposição do leitor uma das obras menos conhecidas de Gil Vicente.
A edição bilíngüe organizada pelos tradutores é enriquecida com a inclusão de ensaio canônico do "scholar" Leo Spitzer, que permite o contato com uma tradição crítica em certo sentido inédita no país, ao menos do ponto de vista da recepção habitual da obra vicentina -ligada à tendência interpretativa que prioriza as peças em português e o viés social, como observa Carneiro em ótimo estudo incluído no volume.
A apresentação do texto pela especialista Cleonice Berardinelli, a nota editorial em que os organizadores mencionam a edição "princeps" que seguiram, estabelecida por Manuel Calderón, a iconografia sugestiva e as notas esclarecedoras de dificuldades de ordem filológica, histórica e textual do original castelhano são qualidades adicionais desta edição primorosa.

Calendário litúrgico
O volume inclui informações seguras para a contextualização histórica da peça, encenada no mosteiro de Enxobregas, na véspera do Natal de 1513, e endereçada à rainha Leonor (1458-1525), protetora do dramaturgo e incentivadora da vida cultural da corte portuguesa do século 16.
Ligada ao calendário litúrgico, nesse caso à comemoração da natividade e às festividades cortesãs, é uma breve composição dramática destinada à instrução e à devoção, como as outras criações do gênero.
Do parentesco evidente com os mistérios medievais preserva o desapego a estéticas preconcebidas e a infiltração de elementos profanos na temática litúrgica.
É inegável que Gil Vicente adiciona ao auto um encanto peculiar ao apresentar a profetisa homérica da queda de Tróia em versão camponesa e transformar o motivo da virgindade em recusa da pastora à instituição do casamento, considerada "purgatório sem concerto ou temperança", que vai contra seus anseios libertários.
Nas cenas iniciais em que Cassandra vence o duelo verbal com seu pretendente, ninguém menos que próprio Salomão bíblico, é evidente o deslumbramento do dramaturgo com as posições da protagonista.
As acusações de "insana" que o filho de Davi lhe dirige são minimizadas por sua caracterização como camponês rústico e vaidoso, inconformado com a recusa da moça e insistente na exibição de seus dotes casamenteiros (em que o dramaturgo inclui 32 galinhas).
É verdade que, na segunda parte do texto, a argumentação inteligente de Cassandra, que o crítico Robert Potter considera feminista, abre espaço para a sabedoria dos profetas Moisés, Abraão, Isaías e do próprio Salomão, que abandonam o perfil pitoresco para retomarem a defesa dos dogmas da fé.
Como nota Spitzer, "não é incoerente com a técnica de improvisação de Gil Vicente e com sua desenvoltura dramatúrgica que, no momento em que já não necessita mais de Salomão no papel de pretendente, tenha a liberdade de transformá-lo em um profeta de Cristo".
É exatamente nessa passagem que Cassandra revela o verdadeiro motivo de sua recusa ao casamento, anunciando a concepção de Cristo em si mesma. Diante da "blasfêmia" inconcebível, o auto perde a atmosfera de comédia de costumes para assumir um tom devoto, muito próximo dos mistérios medievais.
Na cena final do presépio, em que o encenador Gil Vicente monta um quadro vivo de poesia, música e dança, Cassandra emudece para dar lugar às paráfrases bíblicas de louvação ao Messias, antes de curvar-se diante de Maria, que Spitzer considera seu par antitético. O ensaísta vê nessa cena operística uma verdadeira "obra de arte total" de apelo aos sentidos.
Em sua análise exemplar, mostra que o principal tema da peça é a profecia, já que todas as personagens, com exceção de Cassandra, anunciam o nascimento de Cristo em Maria.

Sínteses culturais
O tópos dominante no texto explica o vínculo de figuras e acontecimentos pré-cristãos com personagens da cristandade, unidos no "cosmos unificado na expectativa do redentor", a que Cassandra opõe sua "hybris" pessoal e seu isolamento trágico.
A compressão da história e o abandono da cronologia para a projeção desse tempo que se encurta na figuração de "sínteses culturais", apresentadas como quadros independentes em sua lógica interna, sem dúvida são precursores dos elaborados mecanismos narrativos da cena épica de Bertolt Brecht, como observaram, com precisão, [os críticos] Antonio José Saraiva e Anatol Rosenfeld.
Além do mais, se os anacronismos e as superposições de personagens bíblicos e pagãos, o contínuo deslocamento de planos, as várias inserções musicais e coreográficas, a mescla de motivos seculares e religiosos resultam da filiação de Gil Vicente aos traços essenciais do gênero, a liberdade dessa contaminação tem ressonância no hibridismo característico da dramaturgia contemporânea.

Desrespeito às normas
A atualidade da peça vem do desrespeito a qualquer norma de composição dramática, coerência de enredo ou verossimilhança de personagens. Nesse sentido, é possível ampliar o leque de repercussões do teatro vicentino.
Além das filiações sempre lembradas, como os autos regionais de Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, João Cabral de Melo Neto e Vital Santos, da arte militante do Centro Popular de Cultura (no "Auto dos 99%"), do "Auto dos Bons Tratos" (Companhia do Latão), do teatro de revista e das comédias de costumes, é possível, pelo olhar de Cassandra, imaginar que as dramaturgias de Luís Alberto de Abreu, Newton Moreno e Gero Camilo e espetáculos totais como "A Rua da Amargura", (Gabriel Vilela com o Galpão) e "O Livro de Jó" (Teatro da Vertigem) continuam a trilha de realismo e abstração que o criador do teatro português abriu entre nós.


SÍLVIA FERNANDES leciona história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP.

AUTO DA SIBILA CASSANDRA
Autor:
Gil Vicente Organização e tradução: Alexandre Soares Carneiro e Orna Messer Levin
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 32 (160 págs.)


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