São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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+ cultura

A senhora arquitetura

Única mulher a ganhar o Pritzker, principal prêmio da área, Zaha Hadid fala de sua fama de difícil, relembra a infância no Iraque, a Londres dos anos 60 e lamenta a discriminação ainda hoje


"Um arquiteto deve entender os pobres, mas também os ricos, que são os que põem dinheiro"

ANATXU ZABALBEASCOA

É a primeira, a que puxa o carro. Antes que Zaha Hadid (Bagdá, 1950) chegasse ao cume da arquitetura, só haviam se aproximado dele arquitetas à sombra de seus maridos: Aino Aalto, casada com o finlandês Alvar Aalto; Lilly Reich, eclipsada por seu amante Mies van der Rohe; ou, mais recentemente, Denise Scott Brown, co-autora com Robert Venturi do livro "Aprendendo com Las Vegas" [Cosacnaify] e que nem mesmo seu marido citou quando lhe concederam o prêmio Pritzker, em 1991.
Ser mulher e chegar tão alto na arquitetura parecia impossível. Hadid sabe disso. E é tão consciente de sua façanha quanto do preço que teve de pagar. Entretanto, vive seu melhor momento. Já era a arquiteta mais famosa do mundo antes de levantar qualquer edifício. Seus elegantes desenhos lhe trouxeram essa fama.
Em apenas cinco anos, ela conquistou os prêmios mais importantes do mundo -o Mies van der Rohe, o Pritzker (é a única mulher com esse galardão), a medalha Thomas Jefferson e a do Instituto Real de Arquitetos Britânicos- e doutorados honorários das universidades Yale e Columbia.
Hoje tem projetos por todo o mundo: em Abu Dhabi, Copenhague, Dubai, Coréia, Marselha, Roma, Gales, Nápoles ou Guangzhou (China). Hadid não tem fama de fácil.
E não é. Por exemplo, pode mudar sete vezes a hora da entrevista. Adiá-la, cancelá-la e voltar a convocá-la. Mas, quando começa a falar, é capaz de se esquecer do horário de saída de seu avião particular e obrigar que atrasem o vôo sem abrir a boca para pedir.
Após sucessivas convocações e desconvocações, ela aparece sorridente e muito maquiada no hotel Puerta América, em Madri, o lugar da cidade com mais design cosmopolita por metro quadrado. Assim como Norman Foster, David Chipperfield ou Jean Nouvel, Zaha Hadid é autora dos quartos de um dos andares, o primeiro.  

PERGUNTA - A sra. dormiu em seu quarto?
ZAHA HADID
- Não. Sempre que venho aqui me colocam em meus quartos. Mas gosto é de experimentar os dos outros. Dormi em um de Jean Nouvel.

PERGUNTA - E gostou mais ou menos que do seu?
HADID
- Se não for precisar trabalhar, o meu, preto, é muito relaxante. Mas, em um lugar como este, o divertido é experimentar.

PERGUNTA - Há quanto tempo a sra. não pisa no Iraque?
HADID
- Hum... 27 anos. Faz quase 50 que meus irmãos não moram lá. E aos poucos vou ficando sem família próxima no Iraque. A última vez em que fui, nos anos 80, era um lugar muito complicado, muito diferente do país do qual saí adolescente. Hoje está pior.

PERGUNTA - A sra. lembra da Bagdá de sua infância como uma sociedade avançada. Onde foi parar aquele progresso?
HADID
- Não sei. O Iraque em que eu cresci era um lugar liberal, progressista para as mulheres. Minhas colegas de escola são médicas ou farmacêuticas. Têm uma vida profissional.

PERGUNTA - A sra. tem consciência de sua fama de exigente?
HADID
- Eu sou exigente! Mas creio que meu currículo demonstra de quem exijo mais. Ao meu estúdio chega gente de todo tipo. Principalmente agora, que somos 250. Mas ficam os que acreditam no que eu defendo há anos: que as coisas podem ser feitas de outra maneira, que a arquitetura pode mudar a vida das pessoas e que vale a pena tentar.

PERGUNTA - A sra. saiu de Bagdá com 16 anos e, depois de um ano na Suíça e outro em Beirute, aterrissou em Londres. Como era a Londres que encontrou nos anos 60?
HADID
- Não muito diferente da de hoje. Tinha havido uma recessão na Inglaterra, e vivíamos o boom do petróleo. Os anos 60 foram a década da Inglaterra. Revolucionou-se a moda, cortaram-se as saias e os cabelos das meninas.

PERGUNTA - Usou minissaia?
HADID
- Assim que cheguei. O que era poderosíssimo era o mundo do "jet set" em Londres. Respirava-se luxo e glamour.
Foi o princípio dos clubes noturnos, das boates exclusivas, a origem da música disco. Eu entrei nesse mundo como uma árabe com dinheiro. Vivi alguns anos de loucura. Podíamos ir a Paris só para jantar.

PERGUNTA - De festa em festa, onde deixava as preocupações sociais?
HADID
- A arquitetura é uma das artes mais complexas. Por isso é poderosa. Um arquiteto deve entender os pobres, mas também os ricos, que são os que põem o dinheiro. A vida nos clubes era uma universidade tão importante quanto passear pelas ruas dos bairros de periferia. É bom saber de tudo, ainda mais para um arquiteto.

PERGUNTA - E, em meio a tanta farra, de onde tirava ânimo para estudar? Não ficou tentada a se dedicar a algo mais relacionado com a vida noturna, que a fascinava?
HADID
- Bem... não. Naquele tempo eu fazia minha própria roupa, mas foi só. Havia estilistas magníficos, por que eu seria uma a mais? Não sou uma desenhista de moda.

PERGUNTA - Mas a sra. desenhou bolsas para a Louis Vuitton.
HADID
- Porque entendo isso como uma extensão de minhas pesquisas como arquiteta. Dão um objeto para mim e eu o repenso. Mantenho sua identidade, mas no processo ele perde o que o impede de mudar.

PERGUNTA - O que teve de pagar mais caro: o fato de ser mulher, imigrante, querer ser pioneira, ser rica?
HADID
- Tudo isso. A combinação entre uma mulher imigrante, árabe, auto-suficiente e que fazia coisas estranhas não me facilitou em nada as coisas. Mas estar tão destacada me favoreceu. Deixavam-me ser e fazer o que eu quisesse.
Mas ao mesmo tempo bloqueavam minha entrada para certas encomendas e campos profissionais. Comecei a trabalhar em um dos momentos mais retrógrados do século 20, quando a arquitetura estava mergulhada na recuperação de valores históricos muito conservadores. Isso passou.

PERGUNTA - E hoje, quando constrói em toda parte?
HADID
- Ainda tropeçamos.

PERGUNTA - Por quê? Em quê?
HADID
- Não ajuda nada ser árabe, francamente. E, hoje, ainda menos.

PERGUNTA - A sra. não está acima das nacionalidades?
HADID
- Absolutamente. Não é que me digam diretamente: "Não a queremos porque você é árabe". Mas só uma névoa racista explica o inexplicável quando, depois de ganhar concursos, os edifícios acabam sendo construídos por outros.

PERGUNTA - A sra. é religiosa?
HADID
- Sou muçulmana por nascimento. Mas não pratico. Não é um assunto religioso. Tem a ver com o momento que o mundo atravessa.

PERGUNTA - Agora vai construir em Londres a sede da Architectural Foundation e o centro aquático para as Olimpíadas de 2012 (Londres)...
HADID
- Sim, mas, se você for a Londres, verá que toda semana surge um buraco na cidade. Estão retirando todos os edifícios dos anos 60, alguns deles muito interessantes. Em conseqüência, volta a haver espaço para novos edifícios. E quem chamam para levantá-los? Posso ser a arquiteta mais famosa do mundo, mas não estou fazendo nenhum.

PERGUNTA - Por quê?
HADID
- Não entendem o que fazemos. Acham que sou excêntrica. Não estão interessados em mudar, muito menos em inovar. Na Inglaterra o que manda é o que se vende: o preço por metro quadrado. Há uma resistência britânica.

PERGUNTA - Por que continua morando lá?
HADID
- Bem, pela língua. Por meus amigos. Por inércia. Para ser de algum lugar. Além disso, não creio que seja uma questão pessoal. Outras culturas levam a sério os projetos públicos, que são os que me interessam.

PERGUNTA - No País de Gales, tiraram da sra. a encomenda da Ópera de Cardiff depois que ganhou o concurso.
HADID
- Esse foi o momento mais duro da minha carreira. Porque pensei que com aquele projeto poderia finalmente decolar. Mas aprendi.

PERGUNTA - A sra. sempre quis romper os limites da arquitetura. Acredita que hoje mais pessoas do que nunca os estão rompendo?
HADID
- Sem dúvida. Como pessoa e como arquiteta, me interessei em saber por que as coisas são como são. Por que só há um tipo de quarto? Sempre questionei as tipologias. Isso afeta o que se pode fazer nos edifícios e, enfim, sua forma.

PERGUNTA - Seus edifícios falam de liberdade? HADID - É o que pretendo.

PERGUNTA - A sra. diz que a construção de uma marca faz parte da nova identidade das cidades. Também há uma marca Hadid?
HADID
- Eu sou minha marca, e é claro que ser diferenciada aumenta meu cachê. Hoje o original está dentro dos planos dos políticos, e a arquitetura singular, também. Há 15 anos ocorria exatamente o contrário. E eu me vestia de modo igual.

PERGUNTA - Mas apostou alto na sua imagem, em construir um mistério.
HADID
- Sou consciente do interesse da imprensa, e o fato de ser a única arquiteta ganhadora do Pritzker faz com que me reconheçam em alguns lugares. O mistério? Sempre é melhor que a certeza. Cada um pode imaginar o que quiser. Minha marca hoje é a de uma pioneira. E a cultivo.

PERGUNTA - O que a sra. teve de sacrificar para chegar onde está?
HADID
- Tudo. Minha vida pessoal. Não que eu pensasse em me casar e ter uma família. Não era exatamente isso. Mas escolhi uma vida que não admite ser compartilhada com nenhum outro desejo. Não tenho tempo para nada além do que faço.
É fantástico o mundo aberto em que vivemos. Podemos trabalhar em qualquer lugar, mas também vivemos em uma grande armadilha. Na era das estrelas, as pessoas querem vê-las. Se não aparecem, elas se aborrecem. Então você entra em uma espiral de aviões que vai consumindo sua vida.

PERGUNTA - Comentou-se que a sra. não vai a alguns lugares onde constrói edifícios.
HADID
- Não posso ir a todos os lugares. Quem me contrata deve saber que somos uma equipe de 250 arquitetos. Eu sozinha não poderia fazer tudo.

PERGUNTA - Há 15 anos a sra. não podia imaginar aonde chegaria. Onde espera estar daqui a mais 15?
HADID
- Alguém como eu nunca está satisfeito. Gostaria de aplicar minhas idéias a uma escala maior, ao urbanismo. Mas para desenvolver uma idéia são precisos dez anos. Para aplicá-la... depende. Hoje parece que as coisas acontecem em velocidade maior. Mas não se deve confiar. Quando estivermos acostumados à liberdade e à rapidez, chegará uma época dura que não nos freará. E deveremos abrir de novo um caminho... Aqueles que ainda tiverem vontade de fazê-lo.


A íntegra desta entrevista saiu no "El País". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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