São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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EM "O DIÁRIO DO BEAGLE", QUE IRIA CULMINAR EM "A ORIGEM DAS ESPÉCIES", O INGLÊS CHARLES DARWIN EXALTA O BRASIL COMO UM PARAÍSO NATURAL DOMINADO PELA CORRUPÇÃO, A HIPOCRISIA E A INJUSTIÇA

OS INFERNOS DE DARWIN

Divulgação
Cena do documentário "O pesadelo de Darwin", de Hubert Sauper


BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1831, um jovem estudante de Cambridge, nascido numa família de ricos industriais e cientistas, recebeu o convite da sua vida: dar a volta ao mundo, como naturalista, numa expedição de pesquisa e mapeamento das terras mais distantes e exóticas. Teria que conseguir antes o acordo do pai.
Os primeiros parágrafos do diário que Charles Darwin escreveu a bordo do Beagle tratam justamente disso -dos "dois dias angustiantes" que precederam o assentimento paterno, graças à intervenção do resto da família, para que o rapaz de 22 anos, interessado em zoologia e geologia, pudesse embarcar na viagem que não apenas mudaria para sempre o curso da sua vida mas serviria de base e inspiração para uma das teorias mais geniais e revolucionárias da ciência moderna: a seleção natural.


O jovem naturalista percebeu a tragédia brasileira na origem: "Todos aqui podem ser subornados"


Entre 1831 e 1836, o Beagle percorreu as Ilhas Canárias, Cabo Verde, a costa da América do Sul, as ilhas Galápagos, o Taiti, a Nova Zelândia, a Austrália, as ilhas Keeling, a África do Sul, Santa Helena e os Açores. A viagem, relatada no extraordinário "O Diário do Beagle" [trad. Caetano Waldrigues Galindo, 526 págs., R$ 55, ed. da Universidade Federal do Paraná (tel. 0/xx/ 41/ 361-3380)], plantou no jovem Darwin a semente de uma reflexão que iria germinar ao longo de 20 anos e culminar no monumental "A Origem das Espécies", publicado em 1859.

Relatos sobre os homens
A grande originalidade de Darwin foi explicar a transmutação das espécies, uma idéia que já circulava nos meios científicos desde o início do século 19, pelo mecanismo da seleção natural. Ou seja, não só as espécies não eram fixas (como queria o dogma religioso) e evoluíam mas essa evolução ocorria por "preservação das variações favoráveis e rejeição das prejudiciais". Em razão de uma melhor adaptação ao ambiente em que vivia cada espécie, certas características eram herdadas com maior freqüência do que outras.
Para ter uma idéia da revolução provocada por uma explicação tão límpida e lógica como essa, quase 200 anos depois a seleção natural continua a sofrer a resistência e os ataques dos que defendem hipóteses de intervenção divina -seja pela mão de Deus, seja pelo eufemismo recente, de um "desenho inteligente" da natureza, proposto pelos chamados criacionistas.
Certas anotações do diário de bordo de Darwin, como quando discorre sobre os animais das ilhas Galápagos, permitem ao leitor intuir o germe das reflexões que o autor desenvolveria nos anos seguintes. Mas não é nem de teoria nem de ciência que o diário realmente trata. O que mais impressiona não são os relatos sobre a fauna, a flora e a geologia de lugares exóticos, à época praticamente desconhecidos dos europeus, mas sobre os homens que o naturalista vai encontrando pelo caminho.
Mesmo quando se refere aos "selvagens" (àquela altura, a antropologia moderna ainda não tinha feito sua irrupção no mundo das idéias) e a despeito de um certo anglocentrismo e de algumas contradições (Darwin defende a evangelização dos nativos, mesmo depois de atacar a hipocrisia dos religiosos), o naturalista não deixa de exaltar, em mais de uma ocasião, a superioridade de indígenas e de negros escravos quando comparados à mais completa ausência de virtude moral dos brancos que os oprimem e massacram.
Ao mesmo tempo em que o Brasil é relembrado ao longo de toda a viagem como um "paraíso terrestre" (nada marcou tanto o autor quanto a exuberância das florestas brasileiras), não se pode dizer que o jovem Darwin tenha guardado a melhor das impressões dos brasileiros nem que lhes reservasse um lugar privilegiado numa hipotética escala evolutiva das civilizações: "Nunca é muito agradável submeter-se à insolência de homens de escritório, mas aos brasileiros, que são tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis as suas pessoas, é quase intolerável. Contudo, a perspectiva de florestas selvagens zeladas por lindas aves, macacos e preguiças, lagos, roedores e aligatores fará um naturalista lamber o pó até da sola dos pés de um brasileiro".

Horrorizado
Em nenhum outro lugar por onde passou, Darwin ficou tão horrorizado com a hipocrisia, a injustiça, a falta de civilidade e a grosseria: "Se ao que a natureza concedeu aos brasis o homem acrescesse seus justos e adequados esforços, de que país poderiam jactar-se seus habitantes! Mas, onde a maioria ainda está em estado de escravidão e onde o sistema se mantém por todo um embargo de educação, fonte principal das ações humanas, o que se pode esperar, a não ser que o todo seja poluído por sua parte?".
O jovem naturalista percebeu a tragédia brasileira na origem: "Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados".
Os únicos que ainda mostravam alguma dignidade e lhe despertavam algum respeito eram os escravos: "Não posso deixar de crer que serão eles um dia a dar as cartas. (...) Espero que chegue o dia em que eles garantam os seus próprios direitos". Darwin errou no prognóstico. E é triste pensar que, se não fosse pela devastação do "paraíso terrestre" que o fascinou, não veria muita diferença se voltasse a visitar o país hoje.


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