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LIBERDADE VIGIADA
AUTORA DE
UM POLÊMICO
ARTIGO QUE
ACABA DE SAIR
NA REVISTA
INGLESA
"PROSPECT",
ALISON WOLF
DIZ QUE
ABDICAR
DA CARREIRA
PROFISSIONAL
E OPTAR PELA
MATERNIDADE
PODE SER
UMA OPÇÃO
MAIS FÁCIL PARA
MULHERES
COM BAIXO
NÍVEL DE
EDUCAÇÃO
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Ao invés de se alinhar ao discurso feminista e comemorar a "conquista feminina"
da igualdade no mercado de
trabalho nas últimas décadas
-exemplificada, no Brasil, pela eleiçãoe da ministra Ellen Gracie Northfleet, 58, à presidência do Supremo
Tribunal Federal, do qual tomou
posse interinamente na última quinta-feira-, a filósofa inglesa Alison
Wolf, 55, diz que há sérias conseqüências negativas nessa mudança
estrutural da sociedade, que ocorreu
ao longo dos últimos 50 anos.
Para ela, essas transformações
-que considera naturais no contexto econômico global- impuseram
barreiras à maternidade, liqüidaram
um sentimento altruísta que ela
acredita ser inerente à feminilidade e
extinguiram a "irmandade" que tornava as mulheres um grupo homogêneo.
Wolf alinhavou essas idéias em
texto publicado na edição de abril da
prestigiosa revista britânica "Prospect". Coroando a análise de inúmeras pesquisas que realizou nas últimas décadas, especialmente sobre a
história do recrutamento da mão-de-obra feminina, o artigo, antecipado no site da publicação, provocou
furor antes mesmo de a edição em
papel chegar às bancas.
As mulheres que escolherem ter filhos não poderão
ser iguais
|
Na entrevista abaixo, ela diz que o
feminismo sempre foi um movimento "desonesto", que protegia
apenas as mulheres da elite, e que
chegou ao seu fim. Além disso, diz, o
mundo atual inverteu a "ditadura"
do passado, fazendo com que as mulheres (as instruídas, especialmente)
não possam mais aceitar a idéia de
cuidar da família e ter filhos. Para
ela, a igualdade entre gêneros no
mercado de trabalho só existe se as
mulheres abrirem mão da maternidade.
Formada em filosofia e economia
pela Universidade de Oxford, professora de administração do setor
público no King's College, da Universidade de Londres, e especialista
em administração e educação, Wolf
acompanha desde o início da década
de 80 as variações do mercado de
trabalho para as mulheres.
Críticas à parte, Wolf diz que, na
balança, a sociedade atual ainda sai
ganhando na comparação entre as
conseqüências positivas e negativas
dessas mudanças. "Nem mesmo homens gostariam de voltar à situação
que antecedeu a estrutura atual".
Mãe de três filhos e autora de
"Does Education Matter? - Myths
about Education and Economic
Growth" [Educação Importa? - Mitos Sobre Educação e Crescimento
Econômico], Wolf defende, no entanto, seu estatuto profissional: "A
atividade acadêmica é menos valorizada no mercado de trabalho, mas
ainda permite o reconhecimento
público paralelo à preocupação com
a família."
Folha - No artigo da "Prospect", a
sra. discorda da afirmação -defendida por boa parte das feministas- de
que as mulheres ainda não ocupam
postos suficientemente altos no mercado de trabalho. Qual é a razão para
sua discordância?
Alison Wolf - Muitas feministas ainda se encontram em campanha, afirmando que as mulheres não são
bem tratadas o suficiente no mercado de trabalho, que têm mais dificuldade que os homens para progredir
na carreira, que sofrem preconceito
e nunca atingem os postos mais altos. Na verdade, isso é puro "nonsense", falta de perspectiva histórica.
É preciso entender que tudo o que
as mulheres conquistaram no mercado de trabalho só teve início nos
últimos 50 anos -e de forma progressiva. As pessoas que detêm os
postos mais altos atualmente são as
que estão na casa dos 50 anos e entraram no mercado de trabalho antes dessa abertura. Fazem parte de
uma geração em que ainda havia
poucas mulheres na universidade e
no mercado.
Se olharmos a geração atualmente
com 20 anos e imaginarmos como
ela estará daqui a três décadas, podemos prever que, mesmo no postos
mais altos das corporações, haverá
tantas mulheres quanto homens.
Folha - E a sra. acha que, hoje, mulheres e homens são iguais no que diz
respeito à renda?
Wolf - Não, não acho que sejam
iguais. Acho que eles podem ser
iguais, se as mulheres não tiverem filhos. As mulheres que escolherem
ter filhos não poderão ser iguais.
Folha - Então o mercado continua a
diferenciar por gênero?
Wolf - Acho que, se falamos de mulheres que não vão ganhar muito dinheiro de qualquer forma -as menos educadas, e não aquelas que terão chances de ter os melhores empregos- a escolha de ter filhos pode
ser bem mais atrativa do que para
aquelas mais bem preparadas, mais
educadas.
Para as mulheres com menos
oportunidades -por questões de
educação- ter filhos pode ser uma
opção melhor. O ponto é que, quanto mais capaz, mais competente for a
mulher, mais difícil será para ela
abandonar a carreira para ter filhos.
E, se olharmos para mulheres na casa dos 30 anos que não têm filhos, no
mercado de trabalho elas se colocam
tão bem quanto os homens que têm
a mesma preparação, a mesma capacidade e a mesma idade.
Folha - Nesse sentido, o feminismo
teria ajudado a fazer com que, usando
sua expressão, "as mulheres deixassem de existir como grupo homogêneo, tornando-se tão heterogêneo
quanto os homens são"?
Wolf - Exatamente. Acho que o feminismo sempre foi um movimento
desonesto. Ele se apresentava como
um movimento que defendia o interesse de todas as mulheres, mas
era apenas voltado a uma minoria
de mulheres da elite, mas com um
discurso de que todas as mulheres
são iguais e querem as mesmas coisas. Acho que é um movimento que
generaliza de uma perspectiva de
mulheres midiáticas que defendem
interesses privados como se fossem
de todas as mulheres.
O feminismo divulgou
a idéia
de que quem está fora do mercado
de trabalho não tem valor
|
E acho que o discurso do movimento se propagou de forma que
apenas repetimos que as mulheres
não têm o mesmo tratamento, não
conseguem os melhores empregos e
são discriminadas, e acabamos sem
conseguir analisar o que realmente
está acontecendo em torno de nós. O
movimento faz com que tenhamos
sérias dificuldades em aceitar esse
lado negativo das conquistas.
As feministas são culpadas pelo fato de não reconhecermos o problema e por muitas pessoas se recusarem a ver que existem problemas.
Mas não acho que o feminismo tenha sido a única causa. A estrutura
econômica tem uma parcela ainda
maior de responsabilidade nisso.
Folha - A sra. acha que não ter filhos
pode trazer frustração, no futuro, a
essas mulheres hoje vistas como bem-sucedidas?
Wolf - Acho que algumas vão, sim,
se arrepender, mas nem todas. Acho
que as mulheres não têm uma necessidade incontrolável de ter filhos
-ou todas as mulheres teriam mais
filhos-, mas acho que as que têm
estão felizes com eles.
Aquilo que me preocupa muito é o
que vai acontecer com toda essa geração de mulheres que não têm filhos quando elas e os maridos envelhecerem. A família ainda é quem
oferece os cuidados básicos às pessoas idosas. Se muitos casais não tiverem filhos, haverá uma mudança
drástica na sociedade, com muitos
idosos sem amparo familiar.
Folha - Se apontarmos o movimento
feminista como responsável pela conquista da igualdade de condições no
mercado de trabalho, também podemos dizer que ele é responsável por
suas conseqüências negativas?
Wolf - Não tenho certeza de que
podemos responsabilizar o movimento feminista. Sou marxista e
acho que o feminismo teve muito
impacto na forma como as pessoas
acompanharam o debate da conquista de direitos às mulheres, mas
penso que não foi ele que conquistou esses direitos.
O feminismo foi responsável por
difundir essa visão de que apenas o
trabalho importa e nada mais vale a
pena. Mas acho que a causa dessas
mudanças é a democracia, a igualdade, valores presentes na sociedade
de forma bastante separada do feminismo. O feminismo divulgou a
idéia de que quem está fora do mercado de trabalho não tem valor.
Folha - Mais associado ao capitalismo, então?
Wolf - Sim. Marx dizia que a religião era o ópio do povo, e, para ser
realmente maldosa, eu poderia dizer
que o feminismo, longe de ser uma
luta pelos verdadeiros interesses das
mulheres, seria uma ideologia que
encoraja as mulheres a servirem ao
capitalismo global, cuidando para
que esse capitalismo tenha 100% dos
melhores talentos em dedicação exclusiva, e não 50%.
Folha - Se a luta é apenas pelo mercado de trabalho, o movimento se esgota ao conquistá-lo?
Wolf - Acho que o feminismo acabou, na verdade. Ainda temos pessoas protestando de forma isolada.
Há especialmente as mulheres feministas jornalistas que gostam de
apontar casos de preconceito ou dificuldades no mercado de trabalho,
mas o movimento chegou ao fim.
Tenho uma filha, e para a geração
dela, além de não haver a prioridade
em ter filhos, não existe nenhuma
atualidade no feminismo.
Folha - Será que podemos esperar o
surgimento de um feminismo às avessas, que defendesse o direito de a mulher ter e cuidar de seu filho sem ser
vista como "desocupada"?
Wolf - Gostaria de pensar que sim.
Chegaremos a um ponto em que a
sociedade vai entrar em pânico pela
nova conjuntura -isso não vai
acontecer nos próximos 30 anos, entretanto. Há duas possibilidades.
Nos EUA já há um certo contra-ataque por causa da religião evangélica,
que valoriza isso, e a religião pode
fundamentar essa volta a valores como a maternidade.
A outra opção, para a sociedade
secular européia, seria uma mobilização das pessoas que sofrem com a
conjuntura: as mulheres que não podem ter filhos sem abrir mão da carreira. Mas eu não esperaria um contrafeminismo no curto prazo, a não
ser que tenha bases religiosas.
Folha - Quais são as conseqüências
mais negativas dessa ascensão das
mulheres no mercado de trabalho?
Wolf - A mais importante dessas
conseqüências negativas é que o
próprio processo de abertura de
oportunidades no mercado de trabalho às mulheres impõe barreiras
para as mais educadas, mais capazes
e mais bem-sucedidas terem filhos.
Há fortes razões que as levam a não
ter filhos ou a ter apenas um, e isso
nos encaminha a uma situação em
que a grande maioria das crianças
nascidas é filha de mulheres não-educadas ou das menos educadas.
As razões para isso são duas: em
parte acontece porque a sociedade
capitalista faz com que as pessoas recebam salários pelo seu trabalho,
com benefícios para a saúde, pensões, seguridade social.
Então, se a pessoa trabalha, ela tem
uma recompensa, mas entra em
uma situação em que há um custo de
oportunidade: deixar o trabalho para ter filhos se torna muito caro, porque a pessoa perde dinheiro, perde
benefícios e, além disso, no momento em que deixa o mercado de trabalho, sua carreira se desintegra.
Um filho não é algo a que se possa
dedicar meia hora por dia. Crianças
demandam uma enorme quantidade de tempo e esforço, além de custarem muito.
Outro problema, outra desvantagem, escondida nessa conquista feminina é que, no passado, se as mulheres trabalhassem, trabalhariam
em um número de atividades muito
próximas às que teriam no papel de
dona-de-casa. Os primeiros empregos das mulheres bem-educadas
eram de professoras, enfermeiras,
profissões relacionadas ao auxílio a
outras pessoas.
A partir da minha área de pesquisa, percebo uma queda na qualidade
do ensino. Uma vez que as mulheres
mais bem preparadas deixam de valorizar a profissão de professora, por
exemplo, e buscam algo que remunere melhor, deixam a função a uma
maioria menos preparada.
O altruísmo feminino -essa crença construída em grande parte pela
religião e segundo a qual as mulheres devem fazer o bem aos outros-
está deixando de existir. Numa sociedade em que as pessoas são julgadas pelo sucesso profissional, essa
alternativa é desvalorizada, e passa-se a achar que ocupações que fazem
bem ao próximo são coisa de quem
não tem "nada melhor para fazer".
"Melhor" passa a ser equivalente a
ter um emprego bem remunerado, à
ascensão profissional.
Folha - A "ditadura" se inverteu, então? Antes, a entrada no mercado era
barrada às mulheres, hoje lhes é exigido que façam parte dele, ainda que
em detrimento da família e de atividades altruístas?
Wolf - Exato. Substituímos um padrão de normas sociais opressivas
por um outro, regulado pela economia de mercado. As mulheres educadas de hoje em dia não têm permissão para pensar que ter uma carreira sólida e bem-sucedida não seja
o objetivo da vida.
Economicamente, à medida que
mais famílias passam a sobreviver à
base de duas fontes de renda, torna-se mais difícil para elas a construção
de uma vida confortável com apenas
uma fonte de renda, com uma das
pessoas se dedicando mais à casa.
Hoje as pessoas se sentem desvalorizadas se não trabalham, e a estrutura
torna a conquista da qualidade de
vida muito difícil para famílias em
que apenas uma das pessoas trabalha, a não ser que essa pessoa realmente seja muito bem paga.
Folha - Mas então qual é a novidade? Pois ter filhos sempre representou um custo alto para as famílias.
Wolf - O custo de um filho é realmente muito alto, mas a diferença é
que no passado o tempo das pessoas
não tinha um valor tão alto.
Além disso, o mercado era fechado
às mulheres, e a sociedade era construída à base de uma única fonte de
renda por família.
Folha - Esse padrão que a sra. aponta é específico da Inglaterra e dos países desenvolvidos ou é comum a todo
o mundo?
Wolf - O padrão de mulheres com
educação terem cada vez menos filhos é comum em toda a parte, é endêmico ao mundo que tem a idéia de
progresso que temos na sociedade
ocidental. Acho que em todos os países do mundo ocidental temos essa
idéia de que o valor da pessoa é dado
pelo sucesso profissional e pela idéia
de que buscar alternativas é "não ter
nada melhor para fazer". Não tenho
dados estatísticos relacionados à
América Latina, mas ficaria muito
surpresa se fosse diferente e os valores não seguissem o mesmo padrão.
O fato de o altruísmo e a valorização moral de atividades que faziam o
bem a outras pessoas passarem a ser
desvalorizados também é comum a
todo o mundo cristão ocidental. Mas
não sei se essa análise é aplicável à
China ou ao Japão, por exemplo.
Folha - Se fôssemos calcular o lado
positivo e o negativo das conquistas
de igualdade de trabalho das mulheres, você diria que estamos com crédito ou em débito?
Wolf - Acho que para toda a sociedade há crédito, e nem mesmo os
homens gostariam de voltar à situação que antecedeu a estrutura atual.
Mas acho que nossos descendentes
podem vir a pensar que os deixamos
em débito. Nossa geração, nascida
nos anos 50, é a que mais saiu ganhando. Tenho três filhos (18, 25 e
27 anos) e consegui conciliar o trabalho acadêmico com a maternidade, mas acho que, para eles, isso não
foi bom, como família. Além disso, o
cenário para eles é menos promissor
a esse tipo de conciliação.
Folha - A sra. acha que a abordagem
da questão do gênero precisa mudar?
Wolf - Na Inglaterra temos discussões intermináveis sobre questões
como "as mulheres não são tão bem
pagas como os homens", "as mulheres sofrem preconceito", "mulheres
precisam batalhar para voltar a trabalhar depois de ter filhos", e torna-se "óbvio e evidente" [irônica] que o
"único" problema é a falta de creches para ajudar as mães a trabalhar,
que os empregadores não são
"bons" o suficiente para as mães.
O argumento que apresento é que
há problemas estruturais e inerentes
à situação atual. Eu digo que é estúpido se referir às mulheres como se
elas fossem todas iguais -ninguém
se refere aos homens como se eles
fossem todos iguais.
Longe de formarem um grupo homogêneo, as mulheres se dividem
em dois grupos de forma dramática:
as educadas, que buscam uma carreira em detrimento da dedicação à
família, e as não-educadas, que se
dedicam à família por falta de opção.
Folha - É natural essa evolução das
exigências no que diz respeito às mulheres ou deveríamos esperar que
elas ainda se sentissem realizadas ao
ficarem em casa cuidando dos filhos?
Wolf - É completamente natural na
sociedade atual, é endêmico. As pessoas odeiam pensar que há problemas que não podem ser resolvidos
com uma ou duas sacadas inteligentes do governo.
Acho que é um desenvolvimento
natural para algo que é muito importante para a sociedade. Não quero voltar no tempo, à época em que
mulheres não tinham oportunidades. A partir do momento em que as
mulheres são tratadas como cidadãs
iguais, isso acontece inevitavelmente
e não pode ser revertido.
Se tivesse que especular, diria que
talvez algumas mulheres sejam geneticamente mais propensas à idéia
de ter filhos de que outras. Talvez depois de algumas gerações passemos
a ter mais mulheres que queiram ficar em casa e ter filhos em detrimento de uma carreira.
Na verdade, acho que realmente
temos, como contrapartida natural
da democracia, liberdade e igualdade de oportunidades, uma situação
em que, quanto mais capaz e mais
educada uma mulher for, menos
propensa a ter filhos ela se tornará.
E isso não é algo que possa ser resolvido apenas com medidas regulamentares, de direitos a licença-maternidade ou garantia de emprego; é
algo que está imbuído na mentalidade social.
Onde ler
O texto de Alison Wolf publicado na
"Prospect" pode ser lido no endereço
www.prospect-magazine.co.uk
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