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MICROPOLÍTICA DO PODER
REAÇÕES À ELEIÇÃO DA MINISTRA ELLEN GRACIE À PRESIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EVIDENCIAM COMO A SOCIEDADE AINDA ESTÁ VINCADA PELA OPOSIÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO
DA REDAÇÃO
A
função de gerência familiar
não pode caber exclusivamente ao feminino." Preocupada com a crescente cobrança às mulheres tanto no âmbito
profissional quanto no familiar, a
psicanalista Regina Neri, 56, afirma
que é preciso criar uma situação em
que ambos, homens e mulheres,
possam tanto trabalhar quanto cuidar dos filhos.
Doutora em teoria psicanalítica
pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, professora do mestrado de
direito da Universidade Candido
Mendes e autora de "A Psicanálise e
o Feminino" (Civilização Brasileira),
Neri comemora a ascensão de mulheres como a ministra Ellen Gracie
e a coronel Fátima Dutra a altos cargos da hierarquia profissional.
Os comentários sobre o charme e a sensibilidade da ministra reiteram a divisão instaurada pelo pensamento filosófico e científico no século 18
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Para ela, entretanto, ainda existe a
divisão entre masculino (razão, espaço público) versus feminino (sensibilidade, espaço doméstico).
Em entrevista à Folha, por e-mail,
Neri comenta os dados de pesquisa
recente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) que
mostram que as mulheres levam
35% mais tempo de que os homens
para progredirem na carreira ao
posto de gerência ou direção.
(DANIEL BUARQUE)
Folha - As mulheres demoram mais
a ter promoções profissionais que os
homens. A sra. acha que é possível às
mulheres conciliar grandes objetivos
profissionais com a maternidade?
Regina Neri - Em alguns países da
Europa, como na França, existe uma
forte reivindicação para que a licença-maternidade seja concedida aos
homens que se encontram na função de se ocupar dos filhos, o que
aponta para a possibilidade de o homem ocupar uma função tradicionalmente atribuída às mulheres.
A conciliação é possível na medida
em que não se coloque só ao feminino o lugar de gerir o espaço doméstico. Podem aparecer novas formas
do exercício da relação com os filhos
que também podem ser assumidos
pelo masculino, criando uma situação em que ambos, homens e mulheres, possam tanto trabalhar
quanto cuidar da prole.
No entanto o novo se conjuga com
posições conservadoras, como mostram as pesquisas, e a mulher não só
é objeto de discriminação no mundo
do trabalho como também se encontra muitas vezes na situação de
cobrança de ser independente e produtiva, rainha do lar e mãe extremada e, por fim, bela, sedutora e romântica. Ufa!!!
Folha - Como a sra. avalia a eleição
da ministra Ellen Gracie à presidência
do Supremo Tribunal Federal, na última quinta-feira?
Neri - É um acontecimento de peso
e se inscreve num contexto mais amplo da eleição de algumas mulheres
a cargos de chefe de Estado, como
Michelle Bachelet, no Chile.
Mesmo que, do ponto de vista numérico, seja ainda pouco expressivo,
ele é altamente significativo, se levarmos em conta que em apenas
cem anos a mulher rompeu barreiras milenares no que diz respeito ao
seu lugar na sociedade.
A reação dos senadores durante
sua sabatina [no dia 22/3, quando teve o nome aprovado para o Conselho Nacional de Justiça], com comentários constrangedores de teor
machista, revela o quanto ainda causa constrangimento aos homens fazer face à conquista do feminino do
espaço público. Colocar em primeiro plano a beleza, o charme e a sensibilidade da ministra, em detrimento
de sua competência, revelam o
quanto ainda se faz presente a divisão instaurada pelo pensamento filosófico e científico no século 18 entre masculino (razão, espaço público) versus feminino (sensibilidade,
espaço doméstico).
Foi necessária uma longa luta para
que a mulher conquistasse, nos
meados do século 20, a simples
igualdade do direito de voto.
Folha - A indicação de uma mulher à
chefia da Casa Militar de SP elimina a
separação entre "profissões de homem e de mulher"?
Neri - As sucessivas conquistas das
mulheres ao longo do século 20 (o
direito ao trabalho, aos estudos, ao
voto, à independência econômica)
vão abalar profundamente a noção
de essência ou natureza do homem
que o torna apto para o exercício do
conhecimento, da força e do poder, e
uma natureza da mulher referida à
beleza, delicadeza e passividade, a
partir da qual se distribui uma hierarquia de papéis sociais.
Apesar da célebre frase de Simone
de Beauvoir -"ninguém nasce mulher: torna-se mulher"- representar um marco decisivo da mudança
da condição do feminino, os antigos
modelos ainda permanecem.
Assistimos com freqüência, hoje, a
um tipo de comentário sobre a ocupação pelas mulheres de importantes cargos profissionais ou políticos
que se referem a um processo de sua
masculinização, o que vem testemunhar quanto o exercício do espaço
público e do poder está associado a
características do gênero masculino.
Folha - De que forma o movimento
feminista é responsável por essas
conquistas?
Neri - Uma das conquistas mais
importantes do movimento das mulheres foi a de dispor livremente de
seu corpo e sua sexualidade, abrindo
a perspectiva da maternidade como
da ordem de uma escolha, e não
uma imposição social. O advento da
pílula contraceptiva, cuja pesquisa
foi incentivada e financiada por grupos feministas, desfere um golpe decisivo nas teses essencialistas que limitavam o destino do feminino à
maternidade, aprisionavam a mulher no lar reduzindo sua identidade
ao papel de mãe e dona-de-casa.
A particularidade da revolução feminina é o fato de se constituir como
a única revolução no século 20 que
não usa a força das armas nem se coloca como estratégia à tomada do
poder, configurando-se como uma
micropolítica que provoca deslocamentos inexoráveis na sociedade.
Mas quem sabe podemos ir mais
longe, saindo de uma posição que
reduz o movimento feminista a uma
mera disputa com os homens pelo
poder, para pensar em que medida
sua experiência de luta pode conduzir a uma reflexão sobre novas formas do exercício da política que não
seja da ordem de uma relação hierárquica de poder e de domínio.
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