São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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MICROPOLÍTICA DO PODER

REAÇÕES À ELEIÇÃO DA MINISTRA ELLEN GRACIE À PRESIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EVIDENCIAM COMO A SOCIEDADE AINDA ESTÁ VINCADA PELA OPOSIÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO

DA REDAÇÃO

A função de gerência familiar não pode caber exclusivamente ao feminino." Preocupada com a crescente cobrança às mulheres tanto no âmbito profissional quanto no familiar, a psicanalista Regina Neri, 56, afirma que é preciso criar uma situação em que ambos, homens e mulheres, possam tanto trabalhar quanto cuidar dos filhos.
Doutora em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do mestrado de direito da Universidade Candido Mendes e autora de "A Psicanálise e o Feminino" (Civilização Brasileira), Neri comemora a ascensão de mulheres como a ministra Ellen Gracie e a coronel Fátima Dutra a altos cargos da hierarquia profissional.


Os comentários sobre o charme e a sensibilidade da ministra reiteram a divisão instaurada pelo pensamento filosófico e científico no século 18


Para ela, entretanto, ainda existe a divisão entre masculino (razão, espaço público) versus feminino (sensibilidade, espaço doméstico).
Em entrevista à Folha, por e-mail, Neri comenta os dados de pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que mostram que as mulheres levam 35% mais tempo de que os homens para progredirem na carreira ao posto de gerência ou direção. (DANIEL BUARQUE)
 

Folha - As mulheres demoram mais a ter promoções profissionais que os homens. A sra. acha que é possível às mulheres conciliar grandes objetivos profissionais com a maternidade?
Regina Neri -
Em alguns países da Europa, como na França, existe uma forte reivindicação para que a licença-maternidade seja concedida aos homens que se encontram na função de se ocupar dos filhos, o que aponta para a possibilidade de o homem ocupar uma função tradicionalmente atribuída às mulheres.
A conciliação é possível na medida em que não se coloque só ao feminino o lugar de gerir o espaço doméstico. Podem aparecer novas formas do exercício da relação com os filhos que também podem ser assumidos pelo masculino, criando uma situação em que ambos, homens e mulheres, possam tanto trabalhar quanto cuidar da prole.
No entanto o novo se conjuga com posições conservadoras, como mostram as pesquisas, e a mulher não só é objeto de discriminação no mundo do trabalho como também se encontra muitas vezes na situação de cobrança de ser independente e produtiva, rainha do lar e mãe extremada e, por fim, bela, sedutora e romântica. Ufa!!!

Folha - Como a sra. avalia a eleição da ministra Ellen Gracie à presidência do Supremo Tribunal Federal, na última quinta-feira?
Neri -
É um acontecimento de peso e se inscreve num contexto mais amplo da eleição de algumas mulheres a cargos de chefe de Estado, como Michelle Bachelet, no Chile.
Mesmo que, do ponto de vista numérico, seja ainda pouco expressivo, ele é altamente significativo, se levarmos em conta que em apenas cem anos a mulher rompeu barreiras milenares no que diz respeito ao seu lugar na sociedade.
A reação dos senadores durante sua sabatina [no dia 22/3, quando teve o nome aprovado para o Conselho Nacional de Justiça], com comentários constrangedores de teor machista, revela o quanto ainda causa constrangimento aos homens fazer face à conquista do feminino do espaço público. Colocar em primeiro plano a beleza, o charme e a sensibilidade da ministra, em detrimento de sua competência, revelam o quanto ainda se faz presente a divisão instaurada pelo pensamento filosófico e científico no século 18 entre masculino (razão, espaço público) versus feminino (sensibilidade, espaço doméstico).
Foi necessária uma longa luta para que a mulher conquistasse, nos meados do século 20, a simples igualdade do direito de voto.

Folha - A indicação de uma mulher à chefia da Casa Militar de SP elimina a separação entre "profissões de homem e de mulher"?
Neri -
As sucessivas conquistas das mulheres ao longo do século 20 (o direito ao trabalho, aos estudos, ao voto, à independência econômica) vão abalar profundamente a noção de essência ou natureza do homem que o torna apto para o exercício do conhecimento, da força e do poder, e uma natureza da mulher referida à beleza, delicadeza e passividade, a partir da qual se distribui uma hierarquia de papéis sociais.
Apesar da célebre frase de Simone de Beauvoir -"ninguém nasce mulher: torna-se mulher"- representar um marco decisivo da mudança da condição do feminino, os antigos modelos ainda permanecem.
Assistimos com freqüência, hoje, a um tipo de comentário sobre a ocupação pelas mulheres de importantes cargos profissionais ou políticos que se referem a um processo de sua masculinização, o que vem testemunhar quanto o exercício do espaço público e do poder está associado a características do gênero masculino.

Folha - De que forma o movimento feminista é responsável por essas conquistas?
Neri -
Uma das conquistas mais importantes do movimento das mulheres foi a de dispor livremente de seu corpo e sua sexualidade, abrindo a perspectiva da maternidade como da ordem de uma escolha, e não uma imposição social. O advento da pílula contraceptiva, cuja pesquisa foi incentivada e financiada por grupos feministas, desfere um golpe decisivo nas teses essencialistas que limitavam o destino do feminino à maternidade, aprisionavam a mulher no lar reduzindo sua identidade ao papel de mãe e dona-de-casa.
A particularidade da revolução feminina é o fato de se constituir como a única revolução no século 20 que não usa a força das armas nem se coloca como estratégia à tomada do poder, configurando-se como uma micropolítica que provoca deslocamentos inexoráveis na sociedade.
Mas quem sabe podemos ir mais longe, saindo de uma posição que reduz o movimento feminista a uma mera disputa com os homens pelo poder, para pensar em que medida sua experiência de luta pode conduzir a uma reflexão sobre novas formas do exercício da política que não seja da ordem de uma relação hierárquica de poder e de domínio.


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