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+(c)ultura
Décima arte ou jogada?
Jogos eletrônicos
cultivam a imagem de "nova arte"; alheios aos debates, consumidores gastam mais
que o público do DVD
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Para alguns, é um problema superado. Kellee Santiago, presidente da Thatgamecompany, abriu uma
conferência na Universidade
do Sul da Califórnia, no ano
passado, com o apelo: "Parem o
debate! Videogames são arte, o
que vem a seguir?". Sua empresa é parte interessada, pois seu
"Flower", para PlayStation 3, é
um dos principais jogos eletrônicos tomados como artísticos.
Santiago contradisse uma
frase do crítico Roger Ebert
(autor de "A Magia do Cinema", Ediouro) contra a pretensão artística dos jogos. A reação
do crítico foi um artigo ferino e
bem-humorado, intitulado
"Por que os videogames jamais
poderão ser arte", publicado
em seu sítio (http://bit.ly/dqMP32) no dia 16 passado.
A disputa entre o crítico veterano e a jovem empreendedora
reflete uma guerra de bilhões
no mercado de entretenimento. Desde 2008, as vendas de jogos (com cerca de US$ 40 bilhões mundialmente) superam
as de filmes em DVD e Blu-Ray.
E, tendo a estética e a cadeia
produtiva do cinema como modelo, o jogo eletrônico procura
sua identidade fora da sombra
dos filmes.
O jornalista
Para Tom Chatfield, 29, editor de cultura na revista britânica "Prospect", "os jogos são o
negócio mais sério do século
21" -esse é o subtítulo de seu
recém-lançado livro "Fun Inc."
(Diversão Inc., ed. Virgin). A
Folha perguntou se não há exagero aí.
"Pode-se dizer que há... mas é
um recurso retórico. O que não
acho exagero é que os jogos e a
cultura a sua volta estão numa
posição única de nos mostrar
partes do comportamento humano. Culturalmente falando,
é um dos grandes temas do século: essa mistura entre trabalho e lazer."
Chatfield é um dos que chamam "Flower" de poema.
Quanto ao estatuto artístico da
linguagem eletrolúdica, ele resume as opiniões majoritárias
dos profissionais do ramo (dos
jogos): trata-se de uma "nova
mídia"; sim, um jogo é arte
quando é bom, tanto quanto
um filme ou um livro não são
necessariamente grande arte
("a maioria dos livros é fraca",
ele comenta); sua especificidade é a interatividade.
Diferentemente da maioria,
o escritor e jornalista britânico
se esforça para não se prender
às comparações com o cinema.
Para ele, a "décima arte" é como a primeira, a arquitetura:
aquele que frui o faz explorando o ambiente. Mas, por conta
da interatividade, a forma artística que mais se aproxima do
jogo acaba sendo a instalação.
O artista
A reportagem procura Nuno
Ramos, que não joga videogame. Ao telefone, o artista responde sobre a possibilidade
contrária: uma instalação ser
um jogo. "Uma instalação do
[norte-americano] Bruce Nauman é interativa, sem ser lúdica, é um negócio meio terrível.
No Brasil, há esse aspecto, em
algumas obras do [Hélio] Oiticica, por exemplo, se bem que
prefiro as menos lúdicas."
Mas o videogame é uma forma de arte? "Arte não tem conceito. Se um grande artista fizer
uma obra de arte com o videogame, vai ser. Do mesmo jeito
como pode fazer com cocô."
De fato, desde o século de
Duchamp a forma é livre. Mas
estamos falando em gêneros
artísticos aglomerados pela semelhança formal, como teatro,
literatura e quadrinhos -mesmo que a "nona arte" ainda engatinhe em termos de reconhecimento na sociedade. O preconceito contra os quadrinhos
(ou contra o cinema, em sua
origem) é frequentemente tomado como exemplo para o jogo eletrônico.
Nuno Ramos questiona:
"Crumb [quadrinista] influenciou [o pintor Philip] Guston...
é um artista menor? Faz-se arte
com tudo. Mas alguma coisa
acaba ficando de fora. Não conheço quem tenha feito arte
com videogame."
Completando 50 anos, Ramos diz que o assunto não circula entre os artistas que conhece. Embora não condene o
novo meio eletrônico, elenca
sintomas crônicos da incompatibilidade: "A obra de arte é autônoma em relação a tudo, é
tensão. O preço de fazer arte é
explodir a intencionalidade do
mundo... pode achar o lúdico ou
o cômico num funeral ou num
discurso político".
Por tal perspectiva, uma boa
obra de arte em videogame talvez não tenha muita graça ou,
no jargão do meio, "jogabilidade" -um dos principais atributos do jogo.
A professora
Marie-Laure Ryan, 63, professora de letras na Universidade de Colorado (EUA), estuda a
relação entre jogo e arte. Em
conversa com a Folha, a suíço-americana contrasta sua especialidade, o estudo das narrativas em diversos meios, com
"jogabilidade".
Admiradora do "Second Life", em que os visitantes ficam
livres num ambiente virtual
que imita um planeta como a
Terra, ela explica por que esse
"mundo virtual" deu mais certo como ponto de relações públicas do que como jogo: "As
pessoas querem ser guiadas,
querem que haja alguém que
medeie a experiência. Como no
"Second Life" não há um roteiro, as pessoas se desinteressaram. Há que fazer um esforço
para haver uma história ali, e as
pessoas não estão dispostas."
Ou seja, jogos precisam ser "jogáveis".
"Explorar", expressão já usada aqui pelo jornalista Chatfield, é uma palavra-chave na
teoria de Marie-Laure Ryan.
Explora-se o "Second Life"; explora-se a fazenda virtual do vizinho nos jogos para Orkut ou
Facebook. Como em arquitetura ou instalação, para chamar
de artística uma rica experiência de exploração pode faltar
apenas um passo.
Ryan elogia "Dante's Inferno" (recém-lançada adaptação
da "Divina Comédia"): "Primeiramente, não é comum fazer adaptações de livros mais
adultos. Mas "Dante's Inferno"
tem os níveis -os círculos do
inferno-, um visual potente.
Grande parte do prazer se dá
em explorar esse mundo estético, em ver", diz. "A experiência
deixa de ser apenas vencer,
mas sim conhecer", acrescenta,
dos EUA, com sotaque francês.
Ela concorda, evidentemente, que jogos podem ser arte.
Com as ressalvas de praxe. "É
como o cinema: nem toda obra
é pensada como arte e nem todas conseguem atingir o status
pretendido".
"Os jogos se tornaram mais
cinematográficos, mas somente em parte, pois a maioria alterna trechos de filme, em que
não há absolutamente interação, com o jogo em si", ela
constata. "Mas há nichos de
mercado que admitem opções,
felizmente."
Por seu valor narrativo, Ryan
elogia jogos como "The Sims"
(na verdade uma série, a mais
vendida para PC), em que os
avatares controlados pelo jogador interagem socialmente:
"As personagens interagem,
desenvolve-se inclusive uma
narrativa e o prazer do jogo está em ver isso acontecer. Há a
exploração da relação".
Mas a distinção funcional fica clara quando se pergunta o
que ela joga: "Não dá tempo de
jogar "Sims". Os jogos artísticos,
que não se preocupam em se
repetir muito, têm essa vantagem: não gastam metade da sua
vida. Penso em jogos como
"The Path" [conto curto de horror], que conta uma história
muito bem."
Problemas antigos
O crítico de cinema Roger
Ebert conclui seu artigo sugerindo que a indústria do entretenimento eletrônico esteja,
por meio do estatuto de "arte",
buscando apenas uma forma de
"validação" contra aqueles que
consideram o jogo uma atividade pueril ou um vício.
Afinal, certos preconceitos
sobre o passatempo eletrônico
são fortes o bastante para que
os profissionais já tenham respostas na ponta da língua: "É
verdade que os jogos tomam
cada vez mais tempo das pessoas. Mas pesquisas americanas mostram que o tempo no
videogame é roubado da TV,
nunca da leitura", diz Tom
Chatfield.
"Antes do videogame já existiam a pornografia e o horror.
Por que banir só os jogos, e não
toda a literatura?", debocha a
professora Marie-Laure Ryan.
Depois que se superam os
preconceitos e se discute se o
jogo é ou não uma forma incipiente de arte, vemos nos diversos discursos o velho problema, assim enunciado pelo filósofo Nelson Goodman (1906-98): "quando" é arte?
A empresária tinha uma definição de que "arte comunica
ideias", não compartilhada pelo crítico de cinema, esteta defensor de alguma experiência
inefável; a professora que define certos jogos como poéticos e
exploratórios não diz que um
passeio real é um acontecimento artístico; o artista plástico
lembra que a arte é possível,
mas não necessária dentro de
qualquer meio. O jornalista britânico vê a relevância cultural
como indício suficiente. Os jogadores não precisaram do rótulo "arte" para transformar o
jogo num mercado bilionário.
Mas a Academia Britânica de
Artes do Cinema e da TV, responsável pelo prêmio Bafta,
que laureia anualmente uma
ou mais pessoas com uma "fellowship" (prêmio concedido
pela primeira vez a Alfred
Hitchcock, em 1971), recentemente passou a incluir no rol
de homenageados personalidades dos jogos eletrônicos.
Em março, Shigeru Miyamoto -um dos principais nomes
da Nintendo, idealizador de
personagens como os Mario
Bros. e do aparelho Wii- recebeu a "fellowship". Em entrevista, quando viu seus produtos
comparados aos clássicos do cinema, esclareceu: "Eu nunca
disse que videogame é arte".
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