São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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+ artes plásticas
À bandeira de todas as bandeiras corresponde o embaixador de todos os embaixadores, o próprio Bispo; Arthur Bispo do Rosário, embaixador da esquizofrenia do mundo
Bispo ou o estandarte do mundo

David Lapoujade
especial para a Folha

O tempo urge. Para a enorme tarefa meticulosa, a tarefa ilimitada de empacotar o mundo, de bordar todos os nomes de todos os conhecidos, de estabelecer todos os mapas da frota brasileira, dos regimentos, das ruas e dos bairros do Rio, de pôr o Carnaval em garrafas, de classificar objetos familiares em grupos arrazoados, de colocar tudo em estandarte para finalmente erguer o imenso estandarte do mundo não há tempo; visto que é preciso estar pronto quando chegar o dia do Juízo Final.
Bispo exprime o que talvez seja uma dimensão de toda obra: a criação não como trabalho preparatório, mas como série de preparativos. Bispo terá passado a vida preparando-se para a prova final. Talvez não tenha tido tempo de costurar a grande bandeira contínua do mundo, a bandeira de todas as bandeiras. Mas poderá apresentar-se a Deus, vestido com seu manto delirante, sua nova pele variegada, eloquente, historiada por múltiplas insígnias, figuras, cifras, dados, mesas de pingue-pongue, sacolas, tabuleiros de xadrez, carrinhos de supermercado, bicicletas e debruada de todos os nomes de todos os conhecidos.
Ele fará a viagem a bordo de sua nave nupcial, envolto em finos bordados, o leito para o grande coito com Rosângela Maria -a psicóloga ou Miss Razão?-, o leito de Romeu e Julieta, intensamente unidos e no entanto violentamente separados. Eles serão escoltados por um amontoado de miniaturas: carros, navios, barcos, paralelepípedos com rodas, minúsculas arcas para um Noé delirante. E, em suas mãos, a obra de uma vida: o prodigioso estandarte de todos os bordados do mundo inteiro. É o presente que Bispo oferece a Deus, por meio do qual ele salva os homens e salva a si mesmo.
Pois o mundo deve ser salvo por seu incansável trabalho, esse bordado interminável, essa grande pele ora tatuada como a de um marinheiro, ora furada por múltiplos poros (cf. os "Brie-soleil"), ora sobrecarregada de todos os objetos familiarmente conhecidos. Se Bispo tivesse se lembrado de algo mais do que de sua vida de marinheiro, se tivesse conhecido algo mais do que as ruas do Rio e os objetos de seu quarto no hospício, sem dúvida o teria integrado em seu trabalho de bordar.
Ainda bem que há as bandeiras, as bandeiras de todas as embaixadas do mundo; assim, é possível estabelecer a lista das bandeiras de todos os países conhecidos, que vai se acrescentar à lista de todas as pessoas conhecidas, de todos os meios de transporte conhecidos, de todos os objetos conhecidos. Cada país é salvo por sua bandeira, mas na medida em que cada uma delas deixa de ser um símbolo nacional vazio para se tornar o excesso de uma vasta geografia, de uma taxinomia, de um dicionário, de um registro, de um atlas de todos os objetos, pessoas, meios de transporte, ruas, nomes e misses de cada país. Cada bandeira é portanto o inventário bordado de um país inteiro. O inventário é um sistema de representação, mas uma representação concebida como embaixada. Com efeito, o embaixador é aquele que porta, bordado em sua pessoa, o nome do que é (caso dos objetos bordados) ou os nomes do que representa (caso das tapeçarias, do manto pessoal de Bispo ou caso das misses). Bispo encontra na relação de embaixada o meio por excelência de esconjurar a esquizofrênica fuga dos nomes e das coisas. "Um nome para cada coisa", pois o nome está fixado sobre a coisa. A coisa deverá portar a vestimenta do que é, deverá ser dotada de seu nome, enfim fixada, um sonho de esquizofrênico: a coisa porta seu nome sobre ela.

Coisas sem nome
Esses esplêndidos objetos bordados serão portanto os embaixadores das coisas sem nome e dos nomes sem coisas, assim como as misses serão as embaixatrizes das beldades de seu países (cf. as listas para cada miss) e as próprias embaixadas são os representantes de seus países -toda uma linguagem-mundo. À bandeira de todas as bandeiras corresponde portanto o embaixador de todos os embaixadores, o próprio Bispo. Arthur Bispo do Rosário, embaixador de toda a esquizofrenia do mundo. Sim, há realmente algo de Noé em Bispo salvar: o mundo conhecido da destruição e salvar a criação do dilúvio, a mesma missão. Mas, pensando bem, talvez Noé não sustente a comparação, pois sua ambição consiste apenas em salvar a razão do mundo por meio de uma amostragem por pares, a preservar um jardim zoológico à la Cuvier, em filas de dois, segundo o gênero e a espécie. Do mundo salva-se apenas sua capacidade de reprodução e sua ordem. Ora, o que Bispo quer salvar é o mundo inteiro, salvar do desmoronamento da "transparência" tudo o que pode sê-lo, retendo-o e fixando-o por meio do bordado. Não será salva apenas uma amostra macho e fêmea, serão salvos os regimentos, as multidões, as praças de guerra, não a vaca e o touro, mas todo o rebanho, não o rei e a rainha, mas todo o tabuleiro (inclusive o "bispo"), nem mesmo as botas esquerda e direita, mas uma multiplicidade de botas, colheres etc. Do mundo salva-se sua capacidade de proliferação e até mesmo sua desordem. Não há seleção, tudo é recuperado (no sentido em que dizemos material de recuperação).

A ordem e os bordados
É preciso bordar o delírio do mundo para que ele não seja totalmente destruído, assim como os homens salvam a ordem militar, política e geopolítica por meio de seus escudos, das insígnias e das bandeiras. Devemos nos render à evidência: a ordem do mundo se mantém por meio de seus diversos bordados. E Bispo deve desmanchar seus próprios uniformes do hospício para levar adiante a tarefa dos homens: bordar a ordem desvairada do mundo. Os críticos de arte não deixarão de conferir a Bispo uma outra glória, a de cruzar, de modo realmente perturbador, os "ready-made" de Duchamp, as acumulações de Armand, as embalagens de Christo e até as obras da Arte Povera, como se em sua atividade incessante Bispo tivesse atravessado toda a arte moderna.
Porém Bispo jamais será agraciado com algo mais que um lugar secundário -na verdade, uma gloriazinha. Onde os críticos invocam uma dessacralização da arte, Bispo revela que tudo é sagrado, que será preciso se apresentar a Deus com cadeado, piano, buzina, roda de bicicleta, todo o disparate do mundo bordado em seu manto louco, sua delirante tanga de índio. E o juiz perante o qual Bispo comparece não é o crítico de arte, razoável, razoável demais, mas o verdadeiro Deus que reconhece na obra de sua criatura sua própria esquizofrenia, a loucura de sua própria criação. Essa é a lição máxima de Bispo: nossas vidas são uma série de preparativos para um Deus esquizofrênico.


David Lapoujade é professor de filosofia da Universidade de Paris 1, autor de "William James -Empirisme et Pragmatisme" (Presses Universitaires de France).
Tradução de Laymert Garcia dos Santos.


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