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Sexo frágil
Rigoroso
e abrangente, "Uma Interpretação do Desejo" estende o desencantamento do mundo aos comportamentos sexuais
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma Interpretação
do Desejo", de
John H. Gagnon, é
uma coletânea de
artigos, relatos biográficos e entrevistas nas quais
o autor fala sobre seu trajeto
intelectual. Gagnon é sociólogo
e, com William Simon, criou a
tese dos "roteiros" -cenários
culturais, roteiros interpessoais e roteiros intrapsíquicos-, hipótese explicativa dos
comportamentos sexuais.
Roteiro, diz ele, são os elementos que definem as situações, os atores e os mapas necessários para que um evento
sexual aconteça. Sem tais elementos cognitivos, "situações
em que todos os ingredientes
sexuais estão presentes podem
manter-se assexuais, no sentido de que nem sequer ocorre a
excitação sexual".
Gagnon critica o que julga
ser o naturalismo de Alfred
Kinsey [que revolucionou a sexualidade americana com o
lançamento dos livros "O Comportamento Sexual do Homem", de 1948] e de Freud e as
abstrações histórico-discursivas de Foucault para mostrar
que a conduta sexual resulta do
aprendizado do sentido de estados físico-mentais, de atos e
de aspectos não-sexuais da vida que lhes são correlatos.
Portanto, dada a pluralidade
de sentido e referência das práticas sexuais, é impossível estipular uma norma biopsicológica do sexo que seja cientificamente justificada.
A norma é fruto do arbitrário
cultural, e não de uma regra necessária, gratuitamente oferecida pela natureza a quem interessar possa.
Um criador de conceitos
A descrição sumária, obviamente, não faz justiça ao rigor
metodológico, à inteligência argumentativa e à riqueza dos fatos analisados nos estudos.
Gagnon é um criador de conceitos; um pensador que extrai
música nova de cacofonias antigas. Mas, justamente por isso,
expõe com nitidez o dilema ético das ciências humanas contemporâneas.
Após renunciar à crença positivista do progresso ilimitado
da razão, ao anseio marxista
por um mundo sem opressão,
ao projeto nietzschiano da vontade de potência livre do bem e
do mal, ao horizonte heideggeriano da abertura do ente à insustentável leveza do ser etc., a
intelectualidade universitária
parece eticamente exausta e resignada a narrar a vida como ela
é, ao rés do chão.
Em Gagnon, o impasse é
consciente, privilégio, aliás, dos
mais capazes e honestos. Dou
um exemplo.
Em dado momento, ele diz
que o traço sexual distintivo da
juventude americana é o de dissociar o prazer da dor, ao contrário dos seus pais, obrigados a
"pagar pelo prazer com um trabalho ingrato e sujo de aprendizes no mercado". Divertir-se
com o sexo, em vez de sujeitar
seu usufruto à contabilidade
moral religiosa, é o que choca
os mais velhos na conduta sexual dos mais jovens.
Em outra passagem, diz que,
habitualmente, as pessoas se
contentam com a insipidez de
suas vidas sexuais, desde que
possam fruir o prazer da fantasia. As crises culturais surgem
quando realidade e fantasia se
aproximam, e os indivíduos
passam a desejar que a última
"seja a mesma coisa que seus
comportamentos".
A observação impressiona
pela acuidade. Indagado, entretanto, sobre o alcance do que
constata e teoriza, Gagnon retruca que a idéia-chave de seus
trabalhos era mostrar que o desencantamento do mundo se
estendeu à sexualidade, cujo
"futuro não será melhor nem
pior, apenas diferente".
Indo além, diz, em outro trecho, que, se alguém lhe perguntasse como gostaria que o mundo fosse, só poderia repetir "os
lugares-comuns democráticos
de praxe: igualdade, democracia, justiça", "expressões de
efeito" repetíveis por qualquer
um. "O mundo, porém, não será
assim." E, dessa "perspectiva
sombria", define seus livros como "uma celebração da falta de
propósito da vida humana".
Vida sem sentido
A afirmação surpreende. Todos conhecemos, mormente no
Brasil, o destino político-social
da igualdade e da justiça, para
saber do que fala Gagnon. Não
se trata, portanto, de posar de
franciscano afluente e negar as
misérias humanas recalcadas
pelo ideário democrático.
Mas, pergunto, isso basta para esvaziar esse ideário de suas
promessas? A defesa da livre
expressão da diferença implica
compulsoriamente "indiferença ética"? Que ideal de neutralidade teórica é esse, que nos desonera moralmente de construir um mundo melhor, mesmo se "nosso melhor" puder
não ser o "melhor" do nosso
próximo? Enfim, que roteiro
cultural levou Gagnon a fazer
de sua obra um elogio ou a elegia da falta de propósito da vida
humana?
Um bom livro é o que agrada
por responder às nossas dúvidas; um ótimo livro é o que incomoda por deixar-nos, ao fim
da leitura, com outras inquietações. "Uma Interpretação do
Desejo", de John H. Gagnon, é
um ótimo livro.
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a Aura" (Garamond), entre outros.
UMA INTERPRETAÇÃO DO DESEJO
Autor: John H. Gagnon
Editora: Garamond (tel. 0/xx/21/
2504-9211)
Quanto: R$ 40 (456 págs.)
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