São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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Sexo frágil

Rigoroso e abrangente, "Uma Interpretação do Desejo" estende o desencantamento do mundo aos comportamentos sexuais

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma Interpretação do Desejo", de John H. Gagnon, é uma coletânea de artigos, relatos biográficos e entrevistas nas quais o autor fala sobre seu trajeto intelectual. Gagnon é sociólogo e, com William Simon, criou a tese dos "roteiros" -cenários culturais, roteiros interpessoais e roteiros intrapsíquicos-, hipótese explicativa dos comportamentos sexuais.
Roteiro, diz ele, são os elementos que definem as situações, os atores e os mapas necessários para que um evento sexual aconteça. Sem tais elementos cognitivos, "situações em que todos os ingredientes sexuais estão presentes podem manter-se assexuais, no sentido de que nem sequer ocorre a excitação sexual".
Gagnon critica o que julga ser o naturalismo de Alfred Kinsey [que revolucionou a sexualidade americana com o lançamento dos livros "O Comportamento Sexual do Homem", de 1948] e de Freud e as abstrações histórico-discursivas de Foucault para mostrar que a conduta sexual resulta do aprendizado do sentido de estados físico-mentais, de atos e de aspectos não-sexuais da vida que lhes são correlatos. Portanto, dada a pluralidade de sentido e referência das práticas sexuais, é impossível estipular uma norma biopsicológica do sexo que seja cientificamente justificada. A norma é fruto do arbitrário cultural, e não de uma regra necessária, gratuitamente oferecida pela natureza a quem interessar possa.

Um criador de conceitos
A descrição sumária, obviamente, não faz justiça ao rigor metodológico, à inteligência argumentativa e à riqueza dos fatos analisados nos estudos.
Gagnon é um criador de conceitos; um pensador que extrai música nova de cacofonias antigas. Mas, justamente por isso, expõe com nitidez o dilema ético das ciências humanas contemporâneas. Após renunciar à crença positivista do progresso ilimitado da razão, ao anseio marxista por um mundo sem opressão, ao projeto nietzschiano da vontade de potência livre do bem e do mal, ao horizonte heideggeriano da abertura do ente à insustentável leveza do ser etc., a intelectualidade universitária parece eticamente exausta e resignada a narrar a vida como ela é, ao rés do chão.
Em Gagnon, o impasse é consciente, privilégio, aliás, dos mais capazes e honestos. Dou um exemplo. Em dado momento, ele diz que o traço sexual distintivo da juventude americana é o de dissociar o prazer da dor, ao contrário dos seus pais, obrigados a "pagar pelo prazer com um trabalho ingrato e sujo de aprendizes no mercado". Divertir-se com o sexo, em vez de sujeitar seu usufruto à contabilidade moral religiosa, é o que choca os mais velhos na conduta sexual dos mais jovens.
Em outra passagem, diz que, habitualmente, as pessoas se contentam com a insipidez de suas vidas sexuais, desde que possam fruir o prazer da fantasia. As crises culturais surgem quando realidade e fantasia se aproximam, e os indivíduos passam a desejar que a última "seja a mesma coisa que seus comportamentos".
A observação impressiona pela acuidade. Indagado, entretanto, sobre o alcance do que constata e teoriza, Gagnon retruca que a idéia-chave de seus trabalhos era mostrar que o desencantamento do mundo se estendeu à sexualidade, cujo "futuro não será melhor nem pior, apenas diferente".
Indo além, diz, em outro trecho, que, se alguém lhe perguntasse como gostaria que o mundo fosse, só poderia repetir "os lugares-comuns democráticos de praxe: igualdade, democracia, justiça", "expressões de efeito" repetíveis por qualquer um. "O mundo, porém, não será assim." E, dessa "perspectiva sombria", define seus livros como "uma celebração da falta de propósito da vida humana".

Vida sem sentido
A afirmação surpreende. Todos conhecemos, mormente no Brasil, o destino político-social da igualdade e da justiça, para saber do que fala Gagnon. Não se trata, portanto, de posar de franciscano afluente e negar as misérias humanas recalcadas pelo ideário democrático.
Mas, pergunto, isso basta para esvaziar esse ideário de suas promessas? A defesa da livre expressão da diferença implica compulsoriamente "indiferença ética"? Que ideal de neutralidade teórica é esse, que nos desonera moralmente de construir um mundo melhor, mesmo se "nosso melhor" puder não ser o "melhor" do nosso próximo? Enfim, que roteiro cultural levou Gagnon a fazer de sua obra um elogio ou a elegia da falta de propósito da vida humana?
Um bom livro é o que agrada por responder às nossas dúvidas; um ótimo livro é o que incomoda por deixar-nos, ao fim da leitura, com outras inquietações. "Uma Interpretação do Desejo", de John H. Gagnon, é um ótimo livro.


JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a Aura" (Garamond), entre outros.

UMA INTERPRETAÇÃO DO DESEJO
Autor:
John H. Gagnon
Editora: Garamond (tel. 0/xx/21/ 2504-9211)
Quanto: R$ 40 (456 págs.)


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