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+ sociedade
Pamuk depois do processo
Perseguido
por denunciar os abusos
contra
os direitos humanos em seu país, o escritor turco fala das raízes intelectuais e burguesas do nacionalismo e critica
o romance político
Mustafa Ozer - 5.out.2004/France Presse
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Muçulmana passa diante de loja de lingeries em Istambul, na Turquia |
LILA AZAM ZANGANEH
Um milhão de armênios e 30 mil curdos foram assassinados nesta terra,
e ninguém, exceto
eu, ousa falar disso." O romancista turco Orhan Pamuk confiou sua amargura ao jornal
suíço "Tages Anzeiger" num
dia de fevereiro de 2005.
Ele não teria podido imaginar, na época, a reação em cadeia que suas palavras iriam
desencadear: campanha de imprensa, ameaças e intimidações, um vice-governador que
pediu a destruição de todos os
seus livros, um exílio temporário, e, finalmente, um processo
kafkiano baseado numa lei de
junho de 2005 cujo artigo 301
prevê penas de seis meses a
três anos de prisão para quem
insultar as instituições ou a
identidade turcas.
Sob pressão da comunidade
internacional, a Justiça do país
terminou por arquivar o processo, o que foi feito em 23 de
janeiro deste ano. Mas o mal já
tinha sido feito: Orhan Pamuk
tornou-se o escritor impossível
de ser encontrado. Aqui ele
abre uma única exceção: ei-lo
usando terno preto, com a expressão um tanto quanto irritada e as costas muito ligeiramente arqueadas: "Estou atrasado -me desculpe".
PERGUNTA - Em 1985, o sr. acompanhou Arthur Miller e Harold Pinter numa viagem patrocinada pelo
PEN American Center e a Helsinki
Watch, as quais queriam redigir um
relatório sobre a situação dos direitos humanos na Turquia. Que impressões essa aventura lhe causou?
ORHAN PAMUK - Em 1980, houve
um golpe militar no país. A liberdade de expressão foi suspensa. Os direitos humanos
passaram a ser desprezados.
Nas prisões havia inúmeros
abusos. Apesar disso, as pessoas falavam -as famílias dos
presos e também os escritores.
PERGUNTA - O sr. se sentia solidário? Culpado? Esse é um dualismo
que está presente em seus romances de maneira obsessiva.
PAMUK - Por um lado, sentia
dentro de mim uma explosão
de vergonha, como já pude observar em outras partes do
mundo com a chegada, vindos
dos EUA ou da Europa, de estrangeiros encarregados de investigar a natureza de uma democracia ou a ausência de liberdades: isso provoca uma
vergonha muito difícil de formular, mas que, porém, é sentida por todos.
Por outro lado, pareceu-me,
repentinamente, que também
poderia existir uma solidariedade internacional entre escritores, vistos como os representantes não de seus países de origem, mas do mundo: uma solidariedade nascida de um respeito compartilhado -diria
que quase religioso- pela liberdade de expressão.
PERGUNTA - No entanto o sr. não é
um escritor "político". O sr. gosta de
criar seus próprios mundos oníricos
e multicoloridos. Aliás, alguns de
seus romances têm nomes de cores:
"Meu Nome É Vermelho", "O Livro
Negro", "O Castelo Branco" etc.
PAMUK - É verdade, no início
eu era um tanto quanto nabokoviano. Escrevia essencialmente pela beleza. Enquanto
gerações inteiras de escritores
turcos tomavam como seus
modelos John Steinbeck ou
Máximo Górki -e destruíam o
essencial de seu talento, colocando-o a serviço de alguma
coisa que supostamente os ultrapassava-, eu lia Nabokov e
sonhava.
Hoje, 25 anos mais tarde, sei
que, se naquela época tivesse
cometido o erro de escrever romances políticos, teria sido
destruído. O sistema teria me
aniquilado.
PERGUNTA - E "Neve", em 2004?
Por que repentinamente escrever
um romance sobre o islã, o nacionalismo, o suicídio de jovens obrigadas
a retirar seus véus numa cidadezinha do nordeste do país?
PAMUK - Decidi escrever um
romance político porque, de repente, senti vontade de relatar
meu país de outra maneira. Na
realidade, cada um de meus romances é estruturalmente diferente dos outros.
E, bem, eis um romance radicalmente diferente. Para mim,
todo o prazer da ficção consiste
justamente no ato sempre renovado da composição, logo
antes da execução. A escrita
propriamente dita, depois disso, não passa de ato artesanal.
PERGUNTA - Hoje o sr. se sente tendo certa responsabilidade em relação à Turquia?
PAMUK - Digamos que nunca,
em toda minha vida, procurei
assumir a maioria das responsabilidades políticas que repentinamente passaram a cair sobre meus ombros! Mas elas
acabaram caindo sobre mim,
em razão de invejas, ressentimentos, tabus e pressões diversas. É como se alguma coisa
caísse sobre você de uma janela
superior, no momento em que
você está caminhando pela rua,
despreocupado.
E, pelos fatos de o país ser reprimido e por eu gozar de uma
suposta estatura internacional,
estou sendo obrigado a me
adaptar a esse novo destino. Isso não me agrada.
Meu desejo secreto sempre
foi ser um artista livre. Para
mim, no fundo, a responsabilidade da escrita se limita ao jogo
demoníaco e mágico com as regras do mundo. Ser uma personalidade pública não é bom para o trabalho do escritor. E,
quanto a ser uma personalidade política, não vamos nem sequer falar disso. É um desastre!
PERGUNTA - Que escritores o sr. admira acima de tudo?
PAMUK - Tolstói, Nabokov,
Thomas Mann, esses são meus
grandes escritores. E Proust,
naturalmente. Mas você precisa tentar imaginar todos esses
escritores em Istambul, lidos e
meditados desde minha janela.
Veja bem: enquanto a maioria dos escritores turcos se
preocupava em tecer comentários realistas ou sociais, era
Proust que me falava à alma,
com suas longas orações barrocas, às vezes claras, às vezes
obscuras, mas sempre tão voluptuosas e infinitamente polissêmicas.
PERGUNTA - Alguma vez, antes de
"Neve", o sr. sentiu atração pelo romance político?
PAMUK - Sim. Tenho um romance inacabado que data de
25 anos atrás. É um romance
político dostoievskiano, se posso ousar dizê-lo, no qual se misturavam radicalismo de esquerda e demonismo místico.
Mas aconteceu o golpe de Estado, e teria sido impossível publicá-lo. Foi então que, não sem
grande espanto, me dei conta
de que alguns de meus antigos
amigos marxistas se sentiam
atraídos pelo islamismo e a logorréia antiocidental.
PERGUNTA - Num ensaio publicado
na "New Yorker" em dezembro de
2005 -um mês antes de seu processo em Istambul-, o sr. escreveu
que o nacionalismo turco tem raízes
às vezes estranhas, ao mesmo tempo intelectuais e burguesas.
PAMUK - Sim. É como se, para
se precaverem contra o espectro da anomia globalista e, ao
mesmo tempo, contra o rancor
ansioso das classes trabalhadoras, as classes cultas em alguns
momentos optassem pelo crispar nacionalista mais sumário
possível: "Turcos e nada mais!".
É claro que essa elite é uma
velha sociedade pré-moderna.
E, por reflexo coletivo, ela às
vezes prefere definir-se mais
pelo sentimento nacional do
que pela modernidade -com as
conseqüências, para a democracia, que já conhecemos.
PERGUNTA - Ela também sente a
tentação do islamismo?
PAMUK - Não obrigatoriamente. Diz o clichê que a Turquia se
deixa envenenar pelo islã político. Na realidade, porém, existem tantas cores e nuanças que
o fundamentalismo puro e duro se dilui nelas. Por exemplo,
temos seitas sufis ou grupos esparsos que, reunidos, formam o
imenso espectro daquilo a que
se dá o nome de "islã político".
Mas, atenção, também estão
presentes na Turquia setores
antiocidentais seculares e antidemocratas ateus! Tudo isso
forma uma configuração política de extrema complexidade. E,
naturalmente, para o romancista, cria toda uma paleta de
cores preciosas.
PERGUNTA - De onde vem esse interesse, manifestado em "Neve",
pela Turquia desassistida, por essa
cidade de Kars assombrada por uma
profunda ambivalência entre o islamismo, justamente, e o kemalismo
[ideologia baseada nos princípios de
Kemal Atatürk (1881-1938)]?
PAMUK - De repente, senti um
desejo grande de narrar a Turquia contemporânea, o islã político, o fundamentalismo, o secularismo, o tropismo nacional
pelos golpes de Estado militares, o nacionalismo de nossos
grupos étnicos, as forças políticas e suas facções insondáveis.
E desejei que a história fosse
ambientada numa cidadezinha
de pobreza muito grande e que
essa cidadezinha se transformasse num microcosmo da
Turquia, tal como a vejo hoje.
Quis tecer uma intriga que
revelasse os mistérios e as aparências falsas de meu país, os
modos de pensar sibilinos, o extraordinário labirinto político.
PERGUNTA - O sr. gosta de falar das
hesitações demoníacas de seus personagens. E também, como em "Neve", descrever a vertiginosa complexidade do cenário turco. Como o sr.
sabe, os ocidentais se sentem muito
tentados a simplificar tudo isso, para seus propósitos políticos próprios.
PAMUK - Se você pudesse imaginar o número de pessoas que
sabem que sou pró-europeu,
que desejo ardentemente a integração da Turquia na União
Européia -e que me criticaram
pelo fato de meu romance
"contradizer" minhas idéias
políticas!
Num primeiro momento, isso me surpreendeu. Depois, me
encantou. Pouco importam minhas opiniões políticas pessoais. É preciso que um romance carregue suas forças próprias e defenda suas próprias
cores, como acontece com Thomas Mann.
PERGUNTA - Christopher Hitchens,
na revista "Atlantic Monthly", o
acusou de retratar seus personagens islâmicos com mais simpatia
do que os outros?
PAMUK - Minha regra de ouro é
a seguinte: para escrever um
bom romance, é preciso identificar-se com todos os personagens. E é a identificação com os
personagens mais sombrios
que torna o romance ainda melhor. Naturalmente, o exemplo,
nesse caso, é Dostoiévski.
PERGUNTA - E seu novo romance?
Aquele sobre o qual se comenta que
trata da alta sociedade turca e das
aventuras sociais e sexuais da Turquia contemporânea?
PAMUK - Ele não está avançando. Esse processo me fez perder
um tempo inimaginável.
PERGUNTA - O sr. chegaria a dizer
que o processo mudou o rumo de
sua vida?
PAMUK - De minha vida de escritor, sim, sem dúvida. Mas
hoje estou tentando reencontrar minha vida de antes do
processo, aquele tempo anterior à tempestade -em suma,
retomar a trama do sonho.
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain
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