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Foi para matar ou morrer;
mas queria morrer
ÀS VÉSPERAS DE CONFRONTAR E SER MORTO PELO AMANTE DE SUA MULHER, HÁ 100 ANOS,
EUCLYDES DA CUNHA DIZIA JÁ SE SENTIR "CEDENDO AO DECLIVE" DE SUA VIDA, "ESCORREGANDO POR UMA METAFÍSICA HORROROSA ABAIXO", RELATA MARCO ANTONIO VILLA
Revista "Dom Casmurro"/Acervo Roberto Ventura/IMS
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Velório de Euclydes da Cunha na Academia Brasileira de Letras
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se Eça de Queiroz dizia
que nada mais era que
"um pobre homem de
Póvoa de Varzim",
Euclydes da Cunha
definiu-se como "um tímido":
"Nunca perdi este traço de filho da roça que me desequilibra intimamente ao tratar com
quem quer que seja".
Euclydes foi um homem de
Estado e toda sua reflexão foi
dirigida ao poder: em momento nenhum falou para o povo.
Foi um crítico do Brasil. Uma
semana antes de morrer, disse
ao cunhado: "Vou atravessando
esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. (...) Nostalgia e revolta: tu
não imaginas como andam
propícios os tempos a todas as
mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes
homens-pulhas, dos Pachecos
empavesados e dos Acácios
triunfantes. Nunca se berrou
tão convictamente tanta asneira sob o sol!". Anos antes, escreveu: "Este país é organicamente inviável".
O Brasil passava pelo que
chamou de "pasmaceira trágica". Seu grande amigo, Francisco Escobar, tentou articular
uma candidatura a deputado
federal.
Euclydes logo desistiu: "Ser
deputado nesta terra é hoje
uma profissão qualquer -para
a qual decididamente não me
preparei. Os homens repelem,
com razão, os intrusos."
Ironizava a política ("nesta
terra é a ocupação cômoda dos
desocupados") e os corruptos.
Ao mesmo amigo, relatou que
foi convidado para cuidar da
construção de um presídio:
"Calcula lá, se podes, o enorme
prazer com que vou desempenhá-la... e se pudesse escolher
também os presidiários...". Outros da sua geração, como Silva
Jardim e Raul Pompeia, também se desiludiram com o novo regime e tiveram mortes
trágicas.
Quedas
Pompeia se suicidou no Natal de 1895, semanas após ter sido demitido do cargo de diretor
da Biblioteca Nacional. Acreditava que a República tinha perdido o rumo.
Já Silva Jardim, o grande tribuno do período da propaganda republicana, não conseguiu
sequer ser eleito deputado
constituinte, em 1890. Desanimado, no ano seguinte, viajou
para a Europa e acabou morrendo tragicamente na Itália:
ao visitar o Vesúvio, caiu numa
fenda próxima à cratera e foi
tragado pelo vulcão.
As discordâncias de Euclydes
com o novo regime foram manifestadas ainda durante a Presidência de Deodoro da Fonseca [1889-91].
No quadriênio seguinte
abandonou o Exército, mudou-se para São Paulo e tornou-se
funcionário da Superintendência de Obras Públicas. Permaneceu uma década e depois rumou para o Rio de Janeiro, obtendo, por meio do Barão do
Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, comissões do
Itamaraty, mas sem fazer parte
do corpo diplomático.
Só obteve a nomeação de
professor de lógica para o Colégio Pedro 2º [então Ginásio Nacional] graças à articulação
com o grupo político conhecido
como "Jardim da Infância",
vinculado a Afonso Pena [presidente de 1906 a 1909], especialmente com o deputado Carlos Peixoto.
Afinal, a lei dava ao presidente da República o direito de escolher qualquer um entre os
dois primeiros colocados do
concurso público. Mesmo assim, não perdeu oportunidade
para criticar Farias Brito, o primeiro colocado: "um pobre filósofo, cearense e anônimo";
autor de um livro "que ninguém leu".
Mas nunca foi oportunista.
Quando Floriano Peixoto, em
1893, tinha enorme poder, o recebeu na sede do governo
-Euclydes ainda era visto como o cadete que se rebelou contra a Monarquia. O presidente
falou que poderia nomeá-lo para o que ele desejasse. O recém-formado respondeu que queria
que fosse cumprida a lei, ou seja, um ano de estágio na Central
do Brasil: "Quando me despedi
pareceu-me que no olhar mortiço do interlocutor estava escrito: nada vales".
Isso pode explicar o cruel retrato que fez, anos depois, de
Floriano em "Contrastes e
Confrontos": "O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das
quantidades negativas; cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu,
sem se elevar -porque se lhe
operara em torno uma depressão profunda".
Como bem definiu Roberto
Ventura, seu biógrafo, Euclydes "seguiu sendo um eterno
insatisfeito com as condições
de exercício de suas atividades
profissionais". Da Escola Militar foi expulso, em 1888; depois
não se adaptou à vida de engenheiro militar; em São Paulo
acabou pedindo demissão da
secretaria de Obras; criticou a
expedição que dirigiu no rio
Purus e os trabalhos de cartografia no Ministério das Relações Exteriores.
E como professor? Foram somente dez aulas; a última, dois
dias antes do fatídico 15 de
agosto. É possível que tenha sido feliz somente nos três anos e
meio que passou em São José
do Rio Pardo (SP), justamente
onde pôde escrever com tranquilidade a sua obra-prima. Lá
teve amigos e uma vida pessoal
sem sobressaltos.
Mesmo assim, nos primeiros
meses, reclamou: "Tenho a
existência aspérrima de um
condenado a trabalhos forçados, à margem de um rio odiento, diante do espantalho de
uma ponte desmantelada".
Saúde frágil
Desde a Escola Militar teve
uma saúde frágil. Durante a viagem para a Bahia, para cobrir a
Guerra de Canudos, já estava
doente. No retorno ficou três
meses de licença médica. A tuberculose o acompanhou durante toda a vida. Ironizava os
escarros de sangue: são os "telegramas da morte". Na Amazônia contraiu malária, o que
agravou ainda mais seu estado.
Nos últimos meses de vida,
fez inúmeras queixas aos amigos. Em julho de 1909, escreveu
ao cunhado explicando que não
podia ir visitar o pai: "Escrevo-te de cama. Anteontem à noite
tive uma hemoptise e continuo
mal, ameaçado de outra". Mesmo assim quis viajar, mas o médico o proibiu, pois "não chegaria vivo sequer a São Paulo".
Três dias antes de morrer,
novamente ao cunhado, recordou que, se abandonasse o regime determinado pelo médico,
"não resistirei". E tudo era
agravado pelo estado depressivo crônico, amenizado pelo escritor como "meu pessimismo
abominável".
O casamento com Ana Emília Ribeiro, filha do general Sólon, foi um desastre. Euclydes
era um homem difícil, de gênio
irascível. A vida nômade (que
ele chamava de "erradia e escorregadia") e as dificuldades
financeiras agravaram a crise
do casal. Tinha dificuldades ao
tratar e falar com as mulheres.
Francisco Venâncio Filho, que
publicou parte da correspondência do escritor, notou a ausência de cartas de amor.
Sylvio Rabello, seu biógrafo,
escreveu que "o outro sexo ele
trazia narcisicamente em si
mesmo": "Não se conhece nenhum gesto, palavra ou apenas
olhar que indicasse a ternura
do homem saudável pela mulher ou pelas mulheres que fosse encontrando pelo caminho".
Na conferência que fez sobre
Castro Alves, em São Paulo, não
há menção aos amores do poeta
baiano.
Já em "Os Sertões", as mulheres são retratadas, com raríssimas exceções, como monstros, repugnantes, viragos, bruxas. Uma delas, de acordo com
o escritor, era "uma megera assustadora, bruxa, rebarbativa e
magra -a velha mais hedionda
talvez destes sertões". Outra
era um "demônio de anáguas".
Nem as imagens de santas, encontradas em Canudos, se salvaram: "Marias Santíssimas,
feias como megeras".
As longas ausências do lar,
sempre a trabalho, continuaram. A jovem cônjuge acabou
buscando consolo no cadete
Dilermando de Assis. O escritor
viajou para a Amazônia, nomeado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do
Alto Purus, na fronteira com o
Peru. Partiu a 13 de dezembro
de 1904. Regressou 13 meses
depois.
Pesadelo
Passou semanas sem receber
notícias da família. Na Amazônia tinha pesadelos. Era obrigado a dormir com uma vela acesa, sempre próxima ao corpo,
tanto que, certa vez, chegou a
queimar os lençóis, pois era
perseguido pelo espectro de
uma mulher, que ora entrava
pela janela, ora pela porta do
quarto, de acordo com o escritor Medeiros e Albuquerque.
No regresso encontrou a mulher grávida de dois meses. O
bebê nasceu em julho. Sobreviveu somente uma semana. Em
1907, em novembro, nasceu
mais um filho. Também não era
seu. O pai, novamente, era Dilermando (mesmo assim registrou no seu nome e dizia que
"era uma espiga de milho num
cafezal"). O caso era público.
A mulher não suportava mais
suas viagens. As brigas eram
constantes. E vinham desde os
primeiros anos do casamento.
Em carta ao amigo, o poeta Vicente de Carvalho, em fevereiro de 1909, seis meses antes da
tragédia da Piedade, escreveu:
"Sinto que vou escorregando
por uma metafísica horrorosa
abaixo, e cedendo ao declive
não sei onde irei parar".
Insatisfeito com os rumos da
República, humilhado pelos dilemas de um casamento fracassado e receoso das consequências de uma separação, com a
saúde piorando a cada dia, sempre com problemas financeiros
e, principalmente, sem condições de escrever o tão sonhado
livro sobre a Amazônia, a manhã chuvosa de 15 de agosto de
1909 pode ter sido a sua libertação, de tantos fardos, de tanta
angústia.
No mesmo dia, um domingo,
foi publicada uma longa entrevista que deu para Viriato Corrêa. Não chegou a ler. Logo cedo se dirigiu ao bairro da Piedade, para a casa de Dilermando
de Assis, onde sua mulher tinha
passado a noite. Foi para matar
ou morrer. Mas queria morrer.
MARCO ANTONIO VILLA é professor de história na Universidade Federal de São Carlos (SP) e
autor, entre outros livros, de "Canudos - O Povo da Terra" (Ática).
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