São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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Obras completas espelham mudanças recentes do país

NOVA EDIÇÃO DO CONJUNTO DOS TRABALHOS DE EUCLYDES DA CUNHA REVELA FACETAS DO ESCRITOR OMITIDAS NA COMPILAÇÃO DOS ANOS 60, AINDA PREOCUPADA EM DEFENDER SUA "HONRA'

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

No Brasil dos anos 60, o imaginário político era polarizado pelo discurso autoritário de direita e esquerda, as pesquisas universitárias ainda eram limitadas e a revolução sexual ainda se insinuava. Qual era o papel de Euclydes da Cunha?
Um livro é um livro e suas circunstâncias, e o contraste entre as duas edições das obras completas de Euclydes é um indicativo, ainda que imperfeito, de dois Brasis bem diferentes separados por 40 anos. A Nova Aguilar, a versão nacional da famosa coleção francesa Pléiade (edições compactas, em papel-bíblia, com bibliografia e fortuna crítica), lançou a primeira compilação de Euclydes em 1966, com organização de Afrânio Coutinho (1911-2000). A próxima chega às livrarias até o fim deste mês.
As diferenças são significativas. Para começar, a fortuna crítica precisou ser "zerada". Para o organizador da nova edição, Paulo Roberto Pereira, 62, professor de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense, existia a necessidade nos anos 60 de se valorizar o aspecto "biográfico" de Euclydes da Cunha.
Em outras palavras, na época, ainda era importante defender a "honra" do autor que morreu confrontando o amante da sua mulher. "Em 66 havia a preocupação de preservar a memória do "homem" Euclydes, incluindo uma preocupação com a traição da mulher", diz Pereira. Por isso, a primeira edição ainda traz biografia laudatória, além de cartas anotadas afirmando que Euclydes não sabia da traição.

Inéditos
São argumentos que hoje soam risíveis. Nos anos 60, havia muito material inédito ou pouco conhecido do escritor. Só em 1975 foi publicada a "Caderneta de Campo" (Cultrix), organizada por Olímpio de Souza Andrade e Joel Bicalho Tostes, com as anotações reunidas da Guerra de Canudos. Pereira reorganizou o material com os comentários explicativos dos organizadores.
O número de poemas conhecidos subiu de 37 para 52. A correspondência ativa, que havia somado 191 cartas em 1966, chegou a 397 no livro "Correspondência de Euclides da Cunha" (Edusp), organizado por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, em 1997, e agora alcançou a cifra de 419.
Pereira, que tem uma "euclidiana" de 3.600 títulos, acrescenta que nos últimos 30 anos saíram "excelentes reedições" dos principais livros de Euclydes, todas listadas. Para a nova compilação, segundo ele, "todos os livros estão revistos e confrontados com as melhores edições que existem".
São 15 livros, cerca de 200 artigos de Euclydes e aproximadamente 600 trabalhos sobre o escritor, entre livros, ensaios e artigos.
Dando conta da profusão de estudos acadêmicos nas últimas décadas, o organizador reuniu uma seleção da crítica euclidiana que considera a mais representativa. Nela aparecem Walnice Nogueira Galvão ("Polifonia e Paixão"), Alfredo Bosi ("Canudos Não se Rendeu"), Augusto de Campos ("Transertões"), Berthold Zilly ("Uma Construção Simbólica da Nacionalidade num Mundo Transnacional"), Roberto Ventura ("Euclides da Cunha e a República") e Leopoldo M. Bernucci ("Pressupostos Historiográficos para uma Leitura de "Os Sertões'"), entre outros.
Na nova edição (em dois volumes, sem definição ainda de preço e número de páginas), não há biografia, mas uma cronologia da vida, com "tudo o que foi descoberto nos últimos 50 anos". Foi revisado e ampliado um dicionário euclidiano de nomes próprios.
Como o enfoque é a obra do autor, e não a sua vida, não foram incluídas, por exemplo, as peças do julgamento do tenente Dilermando de Assis, amante de sua mulher Ana, reunidas em "Crônica de uma Tragédia Inesquecível" (Albatroz/Loqüi/Terceiro Nome), uma novidade que só foi publicada tardiamente, em 2007.

Reavaliação biográfica
Para a nova edição da Nova Aguilar, além dos volumosos dados sobre Euclydes coligidos nos últimos 40 anos, uma reavaliação biográfica do próprio Euclydes foi possível.
Por exemplo: a tese de Roberto Ventura, que enfatizou o desencanto de Euclydes com a República, era de difícil assimilação nos anos 60, um momento em que as virtudes republicanas eram convenientes tanto para o regime militar (o progresso autoritário) como para a esquerda (que enxergava na República o evento libertador das forças produtivas).
Atualmente, o mito republicano já foi reavaliado, o que permite uma visão mais matizada da trajetória de Euclydes. Da mesma forma, o escritor experimentou de forma trágica uma série de reviravoltas em suas convicções que são mais facilmente compreensíveis pelo olhar contemporâneo, incluindo o início na ideologia positivista e o breve encantamento com o marxismo.
Euclydes era o autor de um discurso conservador e reformista que nos anos 60 era conveniente. Mas, para o imaginário político atual, certamente é menos importante.
Além disso, dos anos 60 para cá, o período que compreende os anos 30 substituiu o final do século 19 como manancial de estudos para a interpretação brasileira. Rui Barbosa e Euclydes foram substituídos por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. A figura do mito de Euclydes virou um apêndice dos estudos sociais.


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