São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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Ponto de Fuga

Cinema em francês


A câmera francesa é, sobretudo, habitada por uma alma etnográfica, que capta o gesto do dia-a-dia; caracteriza, sem artifício, o jeito de fazer café, de limpar a mesa, de abrir a porta

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Talvez exista uma história da distribuição de filmes no Brasil. Caso contrário, seria bem urgente escrevê-la. A programação dos cinemas, no passado, mostrava uma balbúrdia bem impressionante entre filmes destinados a públicos diversos.
Certas obras áridas, intelectuais, mas que apresentavam alguma nudez ou alguma cena "forte", iam parar em salas populares, especializadas nos filmes eróticos. Ainda mais quando as fitas eram francesas: na época, elas recendiam a enxofre devasso, espalhado em primeiro lugar por Brigitte Bardot.
Para atrair um público de bas-fonds, "As Corças" (1968), de Chabrol viu seu título mudado por um cinemão do centro. Em francês era "Les Biches", ou seja, as corças.
Inspirado pela homofonia, o dono do cinema fez um enorme cartaz onde pôs escrito: "As Bichas".
Os distribuidores acrescentaram a "Mouchette" (1967), filme feito com a fé austera, jansenista, profundamente católica, de [Robert] Bresson, o epíteto explicativo de "A Virgem Possuída".
Naqueles tempos de censura pudica, o pobre freqüentador de salas mal-afamadas, buscando um pouco de erotismo para colorir sua vida, atraído por um título enganoso, enfrentava hora e meia de severidade cinematográfica esperando por uma alguma recompensa bem magra.

Comezinho
"Mouchette" contém uma cena muito intensa: na beira da pia, uma pequena tigela cai e se espatifa no chão.
Apenas isso. Essa queda vale o naufrágio do Titanic. Bresson extrai, pela pura intuição cinematográfica, um mundo de emoções e de significações desse acidente corriqueiro.
O cotidiano, o banal, é a inspiração mais constante e mais rica do cinema francês. Nasce com a própria invenção do cinematógrafo, com os irmãos Lumière filmando a saída dos operários de uma fábrica ou pessoas esperando um trem.
Há grandes exceções, mas elas são relativamente raras.
A câmera francesa é, sobretudo, habitada por uma alma etnográfica, que capta o gesto do dia-a-dia. Caracteriza, sem artifício, o jeito de fazer café, de limpar a mesa, de abrir a porta.
As cozinhas do cinema francês são o oposto das cozinhas nas comédias da [atriz] Doris Day, em filmes que eram também maravilhosos, mas por outras razões, pela esplêndida pasteurização visual dos estereótipos.

Qualquer
O cinema francês de hoje é bem melhor do que deixa entrever a atual distribuição caótica no Brasil. [Robert] Guédiguian, cineasta vigoroso, teve dois ou três de seus filmes exibidos aqui. Emmanuel Mouret, fino, sensível, espécie de Rohmer lacônico, mal apareceu em algum festival.

Contra
Certos filmes franceses de 2007, discretos, sem efeitos estilísticos ou apelos sentimentais, navegam na contracorrente dos conformismos, escolhendo a rebeldia diante dos comportamentos convencionais, do bom-mocismo sentimental.
É assim "Pur Week-End" [Puro Fim de Semana], de Olivier Doran, que fala de coisas bem utópicas em nossos dias egoístas: generosidade, cumplicidade altruísta, fora de uma justiça oficial, bem incapaz de humanidade.
"Le Prix à Payer" [O Preço a Pagar], de Alexandra Leclère, sublinha, em tom de humor, os pactos covardes que mantêm casais unidos.
Acima de todos, há uma clara obra-prima: "Très Bien, Merci" [Muito Bem, Obrigado], de Emannuelle Cuau. Verdadeiro filme foucaultiano, descreve o fascismo que se infiltra nas democracias pelas formas de controle burocrática, policial, hospitalar. Nada de tese, porém: o estilo contido impõe uma verdadeira escrita cinematográfica da primeira à última tomada.


jorgecoli@uol.com.br


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