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Ponto de Fuga
Cinema em francês
A câmera francesa é, sobretudo, habitada por uma alma etnográfica, que capta o gesto do dia-a-dia; caracteriza, sem artifício, o jeito de fazer café, de limpar a mesa, de abrir a porta
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Talvez exista uma história
da distribuição de filmes
no Brasil. Caso contrário,
seria bem urgente escrevê-la. A
programação dos cinemas, no
passado, mostrava uma balbúrdia bem impressionante entre
filmes destinados a públicos diversos.
Certas obras áridas, intelectuais, mas que apresentavam
alguma nudez ou alguma cena
"forte", iam parar em salas populares, especializadas nos filmes eróticos.
Ainda mais quando as fitas
eram francesas: na época, elas
recendiam a enxofre devasso,
espalhado em primeiro lugar
por Brigitte Bardot.
Para atrair um público de
bas-fonds, "As Corças" (1968),
de Chabrol viu seu título mudado por um cinemão do centro. Em francês era "Les Biches", ou seja, as corças.
Inspirado pela homofonia, o
dono do cinema fez um enorme cartaz onde pôs escrito: "As
Bichas".
Os distribuidores acrescentaram a "Mouchette" (1967),
filme feito com a fé austera,
jansenista, profundamente católica, de [Robert] Bresson, o
epíteto explicativo de "A Virgem Possuída".
Naqueles tempos de censura
pudica, o pobre freqüentador
de salas mal-afamadas, buscando um pouco de erotismo para
colorir sua vida, atraído por um
título enganoso, enfrentava hora e meia de severidade cinematográfica esperando por
uma alguma recompensa bem
magra.
Comezinho
"Mouchette" contém uma
cena muito intensa: na beira da
pia, uma pequena tigela cai e se
espatifa no chão.
Apenas isso. Essa queda vale
o naufrágio do Titanic. Bresson
extrai, pela pura intuição cinematográfica, um mundo de
emoções e de significações desse acidente corriqueiro.
O cotidiano, o banal, é a inspiração mais constante e mais
rica do cinema francês. Nasce
com a própria invenção do cinematógrafo, com os irmãos
Lumière filmando a saída dos
operários de uma fábrica ou
pessoas esperando um trem.
Há grandes exceções, mas
elas são relativamente raras.
A câmera francesa é, sobretudo, habitada por uma alma
etnográfica, que capta o gesto
do dia-a-dia. Caracteriza, sem
artifício, o jeito de fazer café, de
limpar a mesa, de abrir a porta.
As cozinhas do cinema francês
são o oposto das cozinhas nas
comédias da [atriz] Doris Day,
em filmes que eram também
maravilhosos, mas por outras
razões, pela esplêndida pasteurização visual dos estereótipos.
Qualquer
O cinema francês de hoje é
bem melhor do que deixa entrever a atual distribuição caótica no Brasil. [Robert] Guédiguian, cineasta vigoroso, teve dois ou três de seus filmes exibidos aqui. Emmanuel Mouret,
fino, sensível, espécie de Rohmer lacônico, mal apareceu em
algum festival.
Contra
Certos filmes franceses de
2007, discretos, sem efeitos estilísticos ou apelos sentimentais, navegam na contracorrente dos conformismos, escolhendo a rebeldia diante dos
comportamentos convencionais, do bom-mocismo sentimental.
É assim "Pur Week-End"
[Puro Fim de Semana], de Olivier Doran, que fala de coisas
bem utópicas em nossos dias
egoístas: generosidade, cumplicidade altruísta, fora de uma
justiça oficial, bem incapaz de
humanidade.
"Le Prix à Payer" [O Preço a
Pagar], de Alexandra Leclère,
sublinha, em tom de humor, os
pactos covardes que mantêm
casais unidos.
Acima de todos, há uma clara
obra-prima: "Très Bien, Merci"
[Muito Bem, Obrigado], de
Emannuelle Cuau. Verdadeiro
filme foucaultiano, descreve o
fascismo que se infiltra nas democracias pelas formas de controle burocrática, policial, hospitalar. Nada de tese, porém: o
estilo contido impõe uma verdadeira escrita cinematográfica da primeira à última tomada.
jorgecoli@uol.com.br
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