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As potências da imagem
O crítico José Carlos Avellar examina o diálogo do cinema com a literatura, as artes plásticas e a música
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando se pensa no
binômio "literatura-cinema", a idéia
mais imediata que
vem à mente é a
das adaptações literárias, ou
seja, a transformação de livros
em filmes. Mas, como mostra
cabalmente o recém-lançado
"O Chão da Palavra", do crítico
José Carlos Avellar, a relação
entre esses dois termos está
longe de ser uma viagem de
mão única da letra em direção à
imagem.
O subtítulo do livro -"Cinema e Literatura no Brasil"- é
enganoso pela modéstia. O ensaio de Avellar não se restringe
ao Brasil nem aos dois meios de
expressão em foco.
Com erudição e fluência admiráveis, o crítico passeia pelas
relações entre o cinema e praticamente todas as outras artes.
E não apenas no sentido mais
evidente, o de apontar a absorção pelo cinema de temas e formas da literatura, do teatro, da
música e da pintura mas também -e principalmente- na
investigação do que existe de
cinema, ainda que em embrião,
em cada uma dessas artes.
Pré-história
Um dos veios mais interessantes de "O Chão da Palavra" é
justamente a discussão que
Avellar, tomando emprestado o
termo "cinematisme", de Serguei Eisenstein, empreende em
torno do "cinema que existiu
antes do cinema".
"O cinema talvez se encontre
presente, latente, como estrutura comum aos muitos modos
de ver e sonhar o mundo criados desde que o homem começou a se pensar como um processo e saiu em busca de um aparelho capaz de registrá-lo
assim: coisa não-acabada, não-concluída, incompleta, rascunho. Compreendendo-se como
rascunho, para melhor se pensar, o homem criou uma expressão-rascunho, todo o tempo em movimento para fora de si mesma", resume o crítico.
Assim, pode-se pensar o diálogo do cinema não apenas com
a literatura, as artes plásticas e
a música que surgiram já sob o
seu impacto -ou seja, depois
da invenção do cinematógrafo
pelos irmãos Lumière, no final
do século 19- mas também
com a pintura de Velázquez, a
literatura de Machado de Assis
e uma infinidade de experiências artísticas em que o cinema
aparece em estado de embrião,
desejo, potência.
Só depois de refletir acerca
das afinidades e intersecções
entre as várias artes, vistas como estruturas de organização
do imediatamente visível e de
construção do imaginário, é
que Avellar se debruça mais detidamente sobre as relações entre filmes e livros, não só no
Brasil (as tentativas de adaptação de Proust, por exemplo,
ocupam todo um capítulo).
O cerne do livro é o diálogo
fecundo entre alguns escritores
centrais da nossa literatura
(Machado de Assis, Euclydes
da Cunha, Mário de Andrade,
Graciliano Ramos, Guimarães
Rosa, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector) e os cineastas que
ousaram levá-los ao cinema
(Nelson Pereira dos Santos, Julio Bressane, Eduardo Escorel,
Leon Hirszman etc.).
Não se trata apenas das adaptações literárias "sctricto sensu" mas da absorção, pelo cinema, de idéias e procedimentos expressivos ou narrativos da literatura -e vice-versa.
Um filme como "Deus e o
Diabo na Terra do Sol", embora
baseado em roteiro original de
Glauber Rocha, deixa ver a todo momento a influência marcante de Euclydes da Cunha e
Guimarães Rosa sobre o cineasta baiano.
Mário e Machado
Um caso que ilustra bem a
natureza de mão dupla das relações entre literatura e cinema
é o de "Lição de Amor", de
Eduardo Escorel, inspirado em
"Amar, Verbo Intransitivo", de
Mário de Andrade. Aparentemente, o romance é muito mais
"cinematográfico" do que o filme, no sentido da utilização de
recursos como a montagem
descontínua e o deslocamento
do ponto de vista.
Outra passagem brilhante do
livro é a que compara duas versões cinematográficas das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o "Brás Cubas" de Julio Bressane e o "Memórias Póstumas" de André Klotzel. "Klotzel leu o que Brás Cubas escreveu. Bressane leu o que Machado escreveu", diz Avellar.
E na sua explicação para essa
sutil diferença resume-se a razão de ser desse belo e alentado
ensaio.
O CHÃO DA PALAVRA - CINEMA
E LITERATURA NO BRASIL
Autor: José Carlos Avellar
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 3525-2000)
Quanto: R$ 48,50 (438 págs.)
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