|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Sociedade
Caindo de amores
O psicanalista Jean-Bertrand Pontalis usa Freud, Proust e Woody Allen para discutir
o sentido da paixão e do prazer na arte e na vida contemporânea
JACQUES DRILLON
Na entrevista abaixo
com Jean-Bertrand Pontalis, o
psicanalista e filósofo fala de amor,
do prazer da mulher, de idealização, da perda da virgindade e
do acaso.
Pontalis, 83, é autor de livros
como "Entre o sonho e a dor"
(ed. Idéias e Letras) e "Vocabulário da Psicanálise" (Martins
Fontes). Em seu novo lançamento, o psicanalista consagra
um belo livro a "Elles" [Elas,
ed. Gallimard, 200 págs.,
15,50, R$ 42].
PERGUNTA - Quando "caímos de
amores" por alguém, iniciamos uma
história?
JEAN-BERTRAND PONTALIS - Penso
que sim. Gosto muito desse
verbo, apaixonar-se ["tomber
amoureux", literalmente "cair
de amor"], que, entretanto, é
menos forte que no inglês, no
qual caímos no amor ["fall in
love"]. É uma queda. Ficamos
muito felizes quando isso acontece mas também sobressaltados. O que está acontecendo
comigo, o que vai acontecer comigo? Para onde caímos?
Ou, melhor dizendo, de onde
caímos? Caímos de nós mesmos, caímos fora de nós mesmos, caímos no outro. Até a
alienação, como Swann [personagem de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust], que cai
no ciúme, na inquietação, na
preocupação permanente, na
busca, na investigação: o ser
amado se torna totalmente impossível de ser apreendido, o
"ser de fuga", como diz Proust.
Ou então é a outra parte de
nós mesmos que se exprime...
Assim, um de meus personagens começa a vigiar a mulher
que ele ama, a desconfiar dela, a
segui-la como um detetive... É
um outro que nos é revelado
dentro de nós mesmos. Como
quando escrevemos: não sabíamos que sabíamos aquilo.
PERGUNTA - Para o sr., contudo, falar de amor é fazer o elogio do amor.
PONTALIS - Um elogio da diferença -da diferença sexual. O
outro é verdadeiramente o outro. É o outro que pode descobrir o que temos de outro em
nós mesmos, nossa própria feminilidade, talvez.
Uma das grandes contribuições da psicanálise é manter a
idéia da bissexualidade psíquica, ao mesmo tempo em que
afirma a diferença entre os sexos. Somos bissexuados e anatomicamente diferentes do outro sexo.
A anatomia é o destino!
PERGUNTA - Quando nos apaixonamos, nos aproximamos dos animais
ou nos distanciamos deles?
PONTALIS - Nós nos distanciamos. Aliás, o sexual não está
obrigatoriamente em jogo nesse momento. Inversamente, se
você sente o desejo irreprimível de transar com uma garota,
não necessariamente está apaixonado por ela.
PERGUNTA - Seu livro é extremamente masculino. Poderia igualmente intitular-se "Nós".
PONTALIS - Nós, com elas, contra elas etc. Não posso assumir
o ponto de vista de uma mulher. Mas é justamente esse um
dos temas do livro: o homem
não tem acesso ao gozo da mulher. Ao mistério dos mistérios.
PERGUNTA - Ou seja, como você pode ter certeza de que ela gozou?
PONTALIS - Exatamente. É claro
que existem alguns sinais "objetivos", contrações vaginais, o
que eu sei disso? Que, além disso, pode ser histérica. Mas só
podemos imaginar o que ela
sente. Dizem sempre que é
mais localizado no homem e
mais geral na mulher, mas isso
é vago. O gozo feminino é irrepresentável, logo, de certa maneira, inimaginável.
"O que deseja a mulher?",
pergunta Freud, que, contudo,
tinha o ar de saber um pouco
sobre isso. Mas o que pede o homem? Para mim, a diferença
vem da mãe. Um garotinho tem
dificuldade em ligar a mãe e a
mulher.
Tentamos explicar as coisas,
falamos dos corpos, do desejo,
do ciúme com relação ao pai,
mas é uma maneira de organizar nosso desconhecimento.
A pergunta que não quer calar é: com o que sonham nossas
mães? Como quando o narrador observa Albertine dormindo e se indaga: como ter acesso
a seu pensamento, a seu desejo? Para onde eles a conduzem?
Eis o inapreensível: a parte feminina da mãe.
PERGUNTA - Com o passar do tempo, a capacidade de amar diminui,
assim como o resto?
PONTALIS - A libido pode se enfraquecer, mas ela se desloca
para outros lugares, para o trabalho, a criação, o poder, pois
uma das grandes descobertas
de Freud é que a libido não está
ligada unicamente ao sexo.
Somos apaixonados em qualquer idade. O resto não decorre, necessariamente... [o poeta
Paul] Valéry dizia que um velhote apaixonado é "sem pé
nem cabeça". Mas nem por isso
ele deixa de se apaixonar.
PERGUNTA - Por que nos apaixonamos por esta e não por aquela?
PONTALIS - É uma pergunta impossível de responder e que nos
fazemos freqüentemente em
relação aos outros.
O que ele vê nela? Ela não
tem nada de especial! E ele, o
único que poderia responder,
tem a capacidade de julgamento falseada por seu amor.
Dito isso, você pode muito
bem não ser cegado pelo amor,
pode enxergar os defeitos do
objeto amado, pode enxergar
nele o que os outros ignoram e
amá-lo apesar de seus defeitos,
até mesmo por seus defeitos.
Sou o único a saber disso, sou
eu quem a descobriu, eu gosto
disso. Não existe cegueira, mas
superestimação e, mais ainda,
idealização: ela é então a dama
do trovador. O amor torna-se
casto.
PERGUNTA - O amor precede a cegueira ou vem depois dela?
PONTALIS - Em "A Anatomia da
Melancolia", Robert Burton
(1577-1640) diz: "O amante é
obcecado por ela: seu rosto doce, seus olhos, seus atos, seus
gestos, suas mãos, seus pés,
suas palavras, sua altura, sua
largura, sua profundidade e todas as suas outras dimensões
são, desse modo, revistas, medidas e registradas pelo astrolábio de suas fantasias".
Essa palavra chamou minha
atenção. Haveria dentro de nós
um aparelho que orienta nossa
travessia. Se, então, eu não puder responder à pergunta "o
que ele vê nela?", é porque não
tenho acesso a esse astrolábio
de suas fantasias. Não tenho
realmente acesso ao meu, tampouco. A escolha não é realmente voluntária e não é nem
sequer fixa: ela é móvel, como
nossas fantasias.
PERGUNTA - Por que devemos nos
esforçar para agradar?
PONTALIS - Não agradamos
-atraímos. É a imantação da
qual fala Burton. Em outras palavras, buscamos fazer o outro
sair de si. Como um ator. Não
estou dizendo que fazemos de
conta. Não é algo artificial, pensado. Mas é esse o princípio.
PERGUNTA - Somos desiguais na
capacidade de amar, de gozar, de
sofrer?
PONTALIS - Com certeza, assim
como somos desiguais em nossa capacidade de sonhar.
PERGUNTA - Quando amamos, somos um ou dois?
PONTALIS - Essa fusão com freqüência é ilusória. Como diz [o
cineasta] Woody Allen: "Que
noite de amor maravilhosa!
Éramos apenas um: eu". Queremos nos fundir no outro, desde que seja em nosso próprio
benefício.
Em todo caso, não é bom ter
sido amado demais, ter certeza
demais disso. Freud dizia que
tinha tanta certeza de ser amado por sua mãe que isso o tornou conquistador por toda a vida. Ao mesmo tempo, isso pode
ser paralisante. Se satisfazemos
plenamente a nossa mãe, ficamos paralisados com os outros.
O que o amor tem de bom é
que ele nunca nos satisfaz totalmente. As mulheres às vezes
acreditam que podem ser plenamente satisfeitas. Talvez essa idéia de vazio preenchido.
Talvez elas o sejam durante a
gravidez? Vemos algumas que
estão num estado de realização
total. Mas o amor, a sexualidade sempre têm algo de inacabado. Freud diz ainda: existe na
pulsão algo que resiste à satisfação plena. Não à satisfação,
mas à satisfação completa.
PERGUNTA - Quando alguém ainda
não fez amor, é um virgem ou um
cabaço?
PONTALIS - Um garoto é um cabaço, uma garota é uma virgem.
Talvez por causa de Maria. Ser
virgem é uma escolha. Ao passo
que ser cabaço é uma fatalidade. O orgulho do descabaçado.
Eu sou alguém, eu não sou mais
qualquer um.
PERGUNTA - Por falar nisso, o que é
"ir longe demais"?
PONTALIS - É temer que tudo
possa voltar a ser banal. Muitas
vezes sinto esse desejo de deixar as coisas como estão, de ser
casto. Por medo de que tudo
desabe.
PERGUNTA - O sr. reserva palavras
terríveis para o amor que se queixa.
PONTALIS - É a queixa do doente, não a do grande doente, mas,
sim, a do hipocondríaco: sinto
dor aqui, sinto dor ali. O mundo
é injusto, porque ela não me
ama, ela me trai, ela é inacessível. É o narcisismo: isso não
quer dizer "por que ela não me
ama como deveria?", mas "como eu mereço"! Sendo que ela
ainda gosta desse imbecil! A
raiva, nesses casos, ainda supera muitas coisas. É melhor.
PERGUNTA - Podemos nos apaixonar por uma pessoa que nos faz bem
ou nos faz mal. Não sabemos por
que o dado cai desse lado ou daquele lado?
PONTALIS - É verdade. O amor
cai sobre você, independentemente de qualquer projeto, de
qualquer plano. É como uma
travessia: vai fazer sol ou cairá
uma tempestade? Às vezes um
único objeto amado dá os dois
resultados: apenas aquele que
faz você sofrer pode curá-lo de
seu sofrimento.
O remédio está no mal. Assim como "eu te amo" também
significa que você lança suas
garras sobre alguém. Você é minha presa. É tanto uma declaração de amor quanto uma declaração de guerra.
Esta entrevista saiu na "Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
no site
www.alapage.fr
Texto Anterior: + Lançamentos Próximo Texto: Aluno de Sartre e Lacan, Pontalis rompeu com ambos Índice
|