São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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+ cultura

Cartas de Françoise Dolto revelam a intimidade e os embates do freudismo e da psicanalista francesa

Catecismo libertário

ELISABETH ROUDINESCO

Amiga de Jacques Lacan, com formação clínica dirigida por Sophie Morgenstern e Edouard Pichon, Françoise Dolto foi e continua a ser a figura mais popular da escola francesa de psicanálise da segunda metade do século 20. Sua maneira inimitável de se dirigir às crianças, o modo simples e acessível que adotava em suas falas na televisão, sua adesão a uma fé cristã que frisava o misticismo e, por fim, as posições que assumiu em favor de uma pedagogia de massa de tom a um só tempo libertário e normativo fizeram dela um personagem irredutível a qualquer descrição maniqueísta. Odiada por seus inimigos, que a apanhavam freqüentemente em contradições, ela era adulada por seus discípulos, que a retratavam como figura sábia, maternal, ainda que sempre brincalhona.


A extrema direita sempre a considerou ultra-esquerdista e, ainda em 2001, a rotulava como aliada dos pedófilos


Na verdade, Françoise Dolto tinha verdadeiro gênio para a clínica. Assim, é por intermédio de sua correspondência, suas aulas e palestras, suas exposições de casos, seus saborosos quebra-cabeças lúdicos e suas maravilhosas interpretações dos desenhos de crianças que se pode descobrir a imensidão de seu trabalho psicanalítico, reunido em diversos volumes [Françoise Dolto - Une Vie de Correspondances, 1938-1988" (Françoise Dolto - Uma Vida de Correspondências, Gallimard, 1.018 págs., 39 - R$ 105)].
Por 50 anos, de 1938 a 1988, ela se alimentou intelectualmente de uma leitura muito pessoal dos textos de Freud, Winnicott, René Spitz e Melanie Klein, mais que de um contato assíduo com a renovação lacaniana.
Nascida em 1908, em uma família de politécnicos direitistas e conservadores, Françoise Marette foi educada de acordo com os princípios didáticos de uma burguesia que sofria conflito em suas devoções e se deixava influenciar pela leitura do jornal fascista "L'Action Française".
Cresceu acreditando que as crianças nasciam em garrafas enviadas ao mundo pelo Sagrado Coração de Jesus, que as coisas referentes ao sexo eram sujas, que os negros, os boches e os judeus eram inimigos da pátria e as mulheres tinham por destino passar da virgindade à maternidade.
Obediente a esse catecismo ensinado amorosamente, Françoise também foi muito influenciada por uma sólida neurose que a tornara incapaz, aos 20 anos, de construir uma identidade. Foi então que, como numerosas mulheres de sua geração, ela decidiu romper com a tradição sufocante e estudar medicina.
A cura psicanalítica com René Laforgue permitiu que se conscientizasse sobre si mesma e desenvolvesse as idéias que lhe possibilitaram inventar, graças à revolução freudiana, uma nova maneira de refletir sobre as relações entre pais e filhos. Em carta endereçada ao seu pai, em 1938, ela anuncia sua conversão e denuncia vigorosamente o anti-semitismo do irmão que, violentamente hostil a Freud, a acusara de "se deixar entreter por judeus".
A despeito dessa ruptura, ela simpatizava com o governo do marechal Pétain durante o período inicial da ocupação da França na Segunda Guerra Mundial, mas sem ceder a qualquer tentação de colaboracionismo ou anti-semitismo. Posteriormente, Françoise se manteria isenta de qualquer envolvimento político, o que não a impediu, em 1977, de travar um combate para que o homossexualismo deixasse de ser considerado crime na França, e de lutar por uma revisão do código penal quanto à sexualidade dos menores de idade. A extrema direita sempre a considerou ultra-esquerdista por isso e, ainda em 2001, 13 anos depois de sua morte, a rotulava como aliada dos pedófilos.

Educação
Foi no período que se seguiu à guerra, em um clima propício à liberação dos costumes, que ela empreendeu sua cruzada pela causa das crianças. Desejosa de impedir que se repetissem os desastres de sua própria educação, ela tentou subverter, pela força de suas palavras francas, as relações psíquicas internas da ideologia da família.
Em dezembro de 1950, em um programa de rádio que reunia sumidades da medicina e da igreja, ela abandonou o texto preparado e transmitiu uma mensagem vibrante aos pais, sobre a necessidade de instruir as crianças quanto a questões sexuais, responder às suas perguntas e jamais mentir sobre suas origens.
Mas Françoise Dolto não se limitou a um papel de médica especialista em alma e sexo na mídia, ela orientou estudantes, participou de todos os debates, expôs casos clínicos com cintilante clareza e se aproximou da ala mais progressista do movimento psicanalítico. Quanto a isso, as cartas que cobrem o decênio 1953-1963 demonstram até que ponto a história da disciplina freudiana foi afetada por disputas fratricidas que contribuíram para sua vitalidade e sua rejeição de um pensamento unificado. É pena que, quanto a esse tema, o editor tenha considerado necessário censurar uma carta na qual Dolto define seus adversários como "judeus comunistas".

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555) ou no site www.alapage.com


Elisabeth Roudinesco é historiadora da psicanálise, autora de "Jacques Lacan" (Companhia das Letras) e "Por Que a Psicanálise?" (Jorge Zahar), entre outros.
Tradução de Paulo Migliacci.
Este texto foi publicado originalmente no jornal francês "Le Monde".


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