São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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+ história

Pesquisador inglês afirma que escravos fugiram de seus senhores que buscavam a independência e lutaram ao lado de britânicos durante a Revolução Americana seduzidos pela promessa de liberdade

Conflito de interesses

BOYD TONKIN

Vinte minutos depois de começada a entrevista, uma nuvem cinzenta chegou do céu da plebéia Kilburn e, desde o céu do fim de agosto, começou a cuspir chuva sobre o terraço no telhado de um edifício cor de sorvete no calmo e escondido recanto burguês de Little Venice. Enquanto os céus traiçoeiros de Londres regavam gratuitamente sua floresta amansada de plantas em vasos, o maior historiador narrativo de nossos tempos -um magro e saltitante raio de energia e eloquência, 60 anos com jeitinho de 16- recolheu o bule de chá e definiu: "Vamos entrar, está chovendo canivetes".
Assim como provavelmente não se daria ao trabalho de imitar um atuário de seguros, você dificilmente pensaria em parodiar a maioria dos historiadores. Quando se trata de Simon Schama, porém, a coisa muda de figura. Sua voz literária abundante (uma dúzia de livros que já venderam mais de 1 milhão de exemplares no Reino Unido) e sua presença carismática e bizarra na tela (nas três temporadas de "History of Britain", que atraíram até 4 milhões de espectadores para a BBC2) o transformaram em marca registrada. Como todas as melhores marcas, o estilo Schama possui um sabor exclusivo. Misto de estudioso e artista, Schama pesquisa nos arquivos e depois cria uma forma de narrativa histórica que casa um trabalho minucioso de retratar personagens, lugares e períodos com a mão de ferro de uma narrativa relatada com pulso forte.


A tão louvável guerra pela liberdade contra a tirania britânica começa a assemelhar-se a uma insurgência de escra-vocratas brutais, desencade-ada para controlar à força seus bens móveis humanos


Virtuose confesso não apenas histórico mas também literário, Schama admite: "Sempre sou acusado de inventar". Ele não inventa -exceto, talvez, no "jeu d'esprit" de seu livro "Dead Certainties", de 1991. Quando, nas páginas de Schama, chove canivetes, faz frio de congelar, faz um calor abrasador ou venta tremendamente, ele é capaz de citar capítulo e verso comprovando que foi assim. E o clima da história faz tudo isso, e mais, sobre as paisagens terrestres e marítimas de Londres, Nova York, Geórgia, Carolina, Nova Escócia, do Atlântico revolto por tempestades e da abafada clareira no meio da selva que iria se tornar Freetown, Serra Leoa, em seu livro "Rough Crossings - Britain, the Slaves and the American Revolution" (Travessias Árduas - A Inglaterra, os Escravos e a Revolução Americana, 384 págs., BBC Books, 20 libras -R$ 85).
Diferentemente da maioria dos líderes de marca, Schama não tem slogan manipulador, exceto a convicção de que historiadores e seus leitores devem evitar o conformismo e a credulidade. "Tirar os panos quentes e atiçar o fogo, é para isso que estamos aqui", diz ele no térreo do apartamento arejado e livre de bagunça que usa quando vai a Londres para filmar ou visitar familiares, deixando sua residência no vale do Hudson. "Os historiadores devem ser encrenqueiros. Somos os inimigos da complacência."
Com "Travessias Árduas", é bem possível que, pelo menos nos EUA, Schama seja visto como tão encrenqueiro que vai ultrapassar o alcance da escala comum que mede esse tipo de gente. Este livro joga por terra muitas idéias largamente aceitas sobre a Revolução Americana. O livro fala dos "lealistas negros": os muitos escravos que, nas décadas de 1770 e 1780, seduzidos pelas promessas de liberdade formuladas pelos britânicos, fugiram às dezenas de milhares de seus senhores norte-americanos, que se rebelavam contra os ingleses, para reunir-se em torno da bandeira do rei George. Especialmente no sul dos EUA, a tão louvável guerra pela liberdade contra a tirania britânica começa a assemelhar-se mais a uma insurgência de escravocratas brutais, desencadeada para controlar à força seus bens móveis humanos.
"As evidências simplesmente não autorizam qualquer outra conclusão", diz este rei das encrencas. "Não importa o que pensemos sobre o comportamento norte-americano e britânico -os próprios negros, em número avassaladoramente maior, votaram com seus pés, bandeando-se para o lado do rei, por mais que possam ter se iludido."
Entremeada com a história dos abolicionistas britânicos, "Travessias Árduas" acompanha o caminho difícil dos ex-escravos que apostaram suas fichas na coroa. O livro acompanha a eles e a seus corajosos defensores britânicos nas esperanças, nas provações e traições de uma viagem épica, deixando a nova República escravocrata, primeiro para um assentamento no meio da vastidão da Nova Escócia, e depois, espantosamente, atravessando o Atlântico, para a "sociedade negra livre e virtuosa" erguida em Serra Leoa sob o olhar heróico, embora neurótico, do primeiro e visionário governador local, John Clarkson (irmão de Thomas Clarkson, líder da campanha antiescravista).
História verídica escrita com mais força e fogo criativo do que 99% da "ficção literária" deste ano, o livro é pontilhado das vozes imensamente comoventes dos próprios escravos libertos e repleto de pequenos detalhes deslumbrantes. Assim ficamos sabendo, por exemplo, que, em Serra Leoa em 1792, "as primeiras mulheres no mundo a votar por qualquer tipo de cargo público foram escravas negras libertas que haviam escolhido a liberdade britânica".

Travessia Pessoal
Schama fez sua própria travessia, que não chegou a ser árdua, quando se mudou de Oxford para Harvard, em 1980, e, em 1993, de Harvard para a Universidade Columbia. Hoje professor em Columbia, ele tem a liberdade de lecionar os cursos que quiser na disciplina de história da arte, que ele tanto ama. Além disso, na esteira triunfal de "A History of Britain", ele prepara um novo seriado para a BBC -sobre viradas na obra de grandes artistas- e está escrevendo os livros que compõem metade de um contrato de sete algarismos, abrangendo livros e trabalho na tela, fechado com a BBC em 2003.
Embora ainda escreva ensaios ocasionais para a "New Yorker" (que ele gosta por seu "clima família"), Schama deixou de produzir as resenhas de arte reunidas em "Hang-Ups". No auge de sua fase de malabarismos em plataformas múltiplas, ele, além de tudo isso, "estava tentando ser marido e pai -e estava prestes a perder a cabeça totalmente". Então a coluna foi eliminada e o trabalho de professor, reduzido, enquanto os filhos cresciam; um está na faculdade, outro é jornalista trainee na "New Republic". Mesmo assim, a vida de calma comparativa de Simon Schama soa como algo que, para a maioria das pessoas, seria um frenesi megadecibélico.
"Travessias Árduas" não irá reduzir esse volume em muito. Essa livro-bomba revisionista parece um presente curioso a oferecer aos Estados Unidos em comemoração de um quarto de século de sucesso de Schama em paragens ultramarinas. É fácil entender porque, diz ele, pouco tempo atrás ele se sentiu "muito aliviado" ao ver seu "green card" ser renovado. Mas o livro é fruto de seu desejo, nutrido por muito tempo, "de fazer um livro que fosse colorido pelo fato de que passei mais ou menos metade de minha vida nos Estados Unidos -escrito num espírito de gratidão e de ceticismo profundo, ao mesmo tempo distanciado e totalmente mergulhado no país, na condição de alguém que ama tanto o críquete quanto o beisebol". Inevitavelmente, o "dia seguinte" do 11 de Setembro apressou o projeto.

Pela discórdia
Em lugar de estender mais uma mão conciliatória até o outro lado do Atlântico, Schama queria voltar sua atenção às bordas irregulares e feridas abertas da história anglo-americana. Ele se sente atraído pelas "brigas sobre custódia da fase pós-divórcio", a "uma história de discussões" -sobre o significado da liberdade, da beleza, da arte. "Inglaterra e EUA são como um casal que já está irreversivelmente divorciado, mas no qual as duas pessoas ainda sentem uma atração não confessa uma pela outra. Existe algo nas correntes sangüíneas política e literária de cada uma que as liga."
Assim, "Travessias Árduas" pode, sim, ser visto como uma espécie de tributo espinhoso ao país adotivo de Simon Schama. "Eu estava muito preocupado em não fazer a autoparabenização britânica tomar o lugar da norte-americana", diz ele, observando que, em muitos casos, os britânicos quebraram suas promessas e venderam ex-escravos. E acrescenta: "O chocante não é o fato de nós (britânicos) os termos traído -o que choca são os momentos de integridade real", quando os aristocratas liberais que lideravam o exército do rei George cumpriam promessas de libertação e proteção feitas aos escravos fugidos. Em um oceano de oportunismo, esses momentos de honra se destacam. "A mensagem a manter em mente aqui é: não nos esqueçamos dos pequenos momentos que, na realidade, são instantes de extraordinária grandeza".
Quanto aos leitores norte-americanos, Schama espera que sua história quebradora de clichês sobre (alguns) britânicos virtuosos e (alguns) revolucionários norte-americanos hipócritas ofereça uma alternativa à história "consoladora" que eles amam, sobre "a sabedoria, nobreza e previdência dos fundadores da nação". "Tudo isso é verdade, mas, de certo modo, é usado como bálsamo para impedir o autoquestionamento. Isso realmente me irrita." No entanto quando amaldiçoa a "epidemia de respeitabilidade" que vem amedrontando os liberais norte-americanos na esteira do "débâcle" iraquiano, Schama soa mais como um nativo irado do que como "outsider" calmo e desinteressado. Então, será que algo em sua segunda pátria ainda lhe parece estranho?
Schama diz que pensou que ir até o Utah para fazer uma palestra para estudantes mórmons traria à tona sua condição diferente, de alguém vindo da velha Europa -mas, em lugar disso, ele adorou a companhia dos estudantes e o debate que fizeram. "Voltei para casa e Ginny, minha esposa, falou: "Você está com aquele sorriso no rosto. Eles o pegaram" -porque a irmã dela é mórmon. "Você foi capturado pelos alienígenas.'"
Isso soa pouco provável, pelo menos enquanto este "missionário do pessimismo" continuar a chover alegremente sobre o desfile americano, trazendo à tona provas embaraçosas de um passado que nunca foi apenas preto e branco. "A história não é uma história real se não tomar essas iniciativas e bater de frente com todas as ortodoxias possíveis", diz ele. É o mais perto que poderemos chegar de um slogan próprio para a marca Schama. "Tudo o que eu faço é alérgico a declarações de posição. Eu só queria escrever a história em tons de cinza." Com "Travessias Árduas", o cinza nunca pareceu tão colorido.

Tradução de Clara Allain
Este texto foi publicado originalmente no "Independent".


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